quarta-feira, 31 de julho de 2019

Coisas de Lou LXX

                                                   

Quando o conheci, decidi tê-lo. A decisão durou até eu descobrir: achava-se o máximo. Havia se casado várias vezes e nunca fora abandonado. Dizia e repetia isso, em um jeito ousado de quem tem a chave da verdade.  Como se fosse feliz. Não era, eu sabia. Vivia em busca de novas relações. E talvez viesse a ter várias, porque nunca soubera fazer escolhas. Pelo que me contara, sempre se deixava ser escolhido. Até descobrir que não cabia na relação. Sofria. Mas só o tempo de se refazer em nova procura. Não admitia, mas sua vocação era ser um buscador. Como se fosse um mecanismo de pesquisa. Quando percebi que eu seria seu próximo resultado, embaralhei suas opções. Aonde estiver, deve estar inconformado. Não lhe dei a chance de chorar por mim.

Lourença Lou

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

LXIX


Elas chegaram e se sentaram na poltrona ao lado da minha, na sala de espera do consultório. A mais alta, de enormes e desnecessários óculos escuros, começou a revirar a bolsa meio desesperada. De repente, um celular apareceu em sua mão:
- Que sentimento ruim! Podia jurar que meu iPhone havia sumido e hoje é dia de faxina lá em casa. Minha bolsa ficou um bom tempo aberta no sofá.
- Mas a faxineira não é de confiança?
- É. Mas nunca se sabe, este pessoal... Ainda bem que foi só um sentimento ruim.
Olhei para elas e o sentimento ruim passou a ser meu. Tinha acabado de ver e ouvir uma atitude preconceituosa e me senti cansada e sem forças demais para reagir. O máximo que consegui foi me sentir indignada e ter pena da faxineira que deveria morar na periferia, atravessar a cidade todos os dias num coletivo lotado e além de pobre certamente deveria também ser negra. O suspeito ideal para qualquer crime imaginado por determinadas cabecinhas preconceituosas que são encontradas em qualquer dia, em qualquer esquina. Infelizmente.

Lourença Lou

LXVIII


Minha amiga Lisie era executiva de uma multinacional. Sempre foi elogiada pelos seus bons resultados. Dois anos depois, sua empresa foi vendida e ela demitida. Ela era a única negra da equipe. E a única a ser demitida.



Lourença Lou

LXVII



Eu a conheci no início do século. Desde a primeira leitura nos apaixonamos. Ela sempre foi divertida, ousada e respondona. Uma quase menina. Eu já era uma avó (mais pra mãe, reconheço), e estava iniciando uma nova ordem, uma quase adolescência tardia. Tínhamos em comum o amor à leitura, a profissão - ela era estudante de letras - e uma inconfessável atração por situações inusitadas. Fomos parceiras num site de crônicas, num shopping em BH e em intermináveis conversas e risadas. Apesar de todas as nossas diferenças, durante alguns anos ela foi minha melhor amiga. Até que nos desaparecemos, mesmo sem termos sumido. Fiquei eu, gostando dela.



Lourença Lou

LXVI


Mostrei a ele os originais do livro. Ele deu uma lida superficial - já conhecia a maioria dos contos breves - e falou: Está esquisita esta desordem cronológica. E você não disse que seriam apenas 40 minicontos? Fiquei olhando para ele sem saber se respondia ou mandava ler Baudelaire. Na dúvida, respondi: - “O direito mais sagrado do homem é contradizer-se.” Ele não sorriu nem comentou nada. Reconheci: Acabei de ler esta frase. Ele sabia que eu não era tão culta nem tinha memória tão boa para fazer citações de improviso. Mas... mas navegar era preciso. Fiz-lhe uma careta e mandei-lhe um beijo conciliador. Afinal, eu o amava. Mesmo ele sendo um chato!

Lourença Lou

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

LXV


Era o irmão mais novo de minha mãe. O mais bonito e gentil também - diziam. Mas desde que sofrera o acidente, estava mudado. Revoltado – dizia minha tia Marilda, sua esposa, com aquela voz educada de professora. Eu não achava ele coitado. Achava esquisito. Vivia de cara feia e xingando sua mulher. Não gostava de visitas, nem da própria família. Não suportava nos ver em sua casa. Barulho de criança o deixava com dor de cabeça, dizia minha tia. Nem éramos mais crianças, nem fazíamos barulho. Ríamos alto, encantados com a piscina que quase nunca podíamos usar. Tia Marilda marcava meia hora. Depois nos levava para a cozinha, nos dava um lanche, se desculpava e nos mandava de volta pra casa da mãedinha - era como chamávamos nossa avó . Quase não o víamos. Às vezes, o ouvíamos gritando com a tia, mas nunca ouvimos a voz dela em tom mais alto do que conhecíamos. Eu não gostava dele. Tentava ficar com dó, mas não gostava mesmo dele.  Tinha medo. Um dia, ao voltar da escola, encontramos mãedinha chorando. A cadeira de seu tio caiu na piscina – ela tentava explicar aos nossos olhares de interrogação. Improvisaram roupas pretas para todos nós. Tia Marilda mandou fazer salgadinhos e docinhos. No dia seguinte, fez uma mesa grande na sala ao lado onde estava o caixão. Nunca tinha visto tantos doces. Nem tia Marilda rir tão alto.



Lourença Lou


(COISAS DE LOU é um projeto literário dos mais interessantes. Nele a poeta Lourença Lou tece um novo gênero, a prosa. Mas o lirismo amadureceu seu ritmo, de tal modo que as breves histórias desta série se impõem pela verdade humana que marca a personalidade da escritora e pela fluência de uma dicção que ela não perde nem quando narra. E o mais fundamental: a autora domina tão completamente o projeto que pula a fronteira dos gêneros e realiza com excelência cada um deles. 
Paulo Bentancur )

LXIV


Acabei a palestra e relaxei na cadeira. Todos saíam de forma organizada e dolorosamente silenciosa. Falar sobre o uso de drogas e suas consequências não era fácil para mim. Ouvir, não era fácil para eles, os pais. Depois que todos saíram comecei a juntar minhas coisas. Ela chegou à minha frente. Magra, uma tristeza cobrindo todo seu corpo. Trazia uma foto de uma menina de uns dezesseis anos. Eu não tinha tempo para ouvir mais uma história - pensei. Em seguida, me lembrei do meu filho. Olhei-a. Ela estava chorando, mansamente. Dei-lhe uma cadeira e me preparei para ouvi-la. - Eu a matei - ela disse. Olhei-a, sem saber o quê dizer. - Ela colocou a faca em meu pescoço. Queria dinheiro ou algo para vender. Eu não tinha mais nada. Não raciocinei. Empurrei-a. Não queria matá-la. Ela caiu dentro da cisterna. - Quando foi isso? perguntei. - Agora mesmo. Não tinha mais motivos pra vir aqui, mas queria saber onde errei. - Você não tem que se sentir culpada pelo vício dela. Entendeu isso? Ela se levantou. Com as duas mãos sobre a mesa, me disse: - Agora não importa mais. Vou à delegacia. Eles precisam buscar o corpo. Seus olhos tinham uma dor que eu nunca vira. Deu-me as costas. Nunca mais soube dela.




Lourença Lou

LXIII


Quando ele atravessou na minha frente, caímos os dois. Quis gritar. A legging que amava rasgara-se no joelho. Antes de abrir a boca, abri os olhos. Os dele estavam fechados. De sua cabeça escorria aquele fio vermelho, grosso, de cheiro forte. Não entendia como alguém podia morrer por causa de uma bicicleta e eu ficar só com o joelho ralado. As pessoas foram chegando e falando e falando e quando percebi estava chorando. Foi quando ele abriu os olhos. Desmaiei. Acordei no hospital com aqueles mesmos olhos quase beijando os meus. Queria bater naquele rosto bonito. A boca dele fechou minhas intenções. Criou outras. Ficamos. Tempos depois queríamos matar um ao outro. Quebrei a bicicleta que não matou nenhum dos dois.

Lourença Lou



Paulo Bentancur Melhor que Lourenca sao as coisas de Lou. Que, na verdade, nada menos sáo que a propria Lou. Geralmente acompanhado de seus affairs, se mete em cada enrasgada. Neste episodio (a maioria tem este tom) um humor negro faz o carro do casal colidir com uma bicicleta. O companheiro de Lou fica com a cabeca escorada no guidon e um denso fio de sangue escorrengo. Quando a ela, so ralou o joelho. Viuva antes do tempo? Váo ao hospital, onde recuperam a atmosfera de um imenso afeto. O tempo,passa, ela ja tem uma bibicleta, briga com o parceiro e ela destroi a bicicleta. O importante e que esta dupla sai incolume de tudo. Mesmo se metendo em cada uma... Leitura extremamente sedutora, prazerosa, entremeada de alguns sustos pelos quais o pobre e felizardo leitor de Lourença Lou curte demais. Queee serie, querida Lourença Lou! Beijo!

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

LXII


Nossos olhos estavam pregados na televisão. A cada novo boletim, mais expectativas. Tancredo, o presidente escolhido sem voto popular, estava no Hospital do Coração, em São Paulo, gravemente doente. Minha sogra rezava continuamente. Meu sogro dizia: já está morto e não querem falar. Não queria a morte dele. Nunca quis. Mas não foi para ter um presidente com aval dos ditadores que eu carregava tantas marcas. Agora eu já não sabia o que seria pior. O fantasma dos anos de chumbo perseguia a todos nós. Um aperto no peito me impedia de falar. Medo. Meu filho caçula choramingou. Fui amamentá-lo tentando não pensar em meu marido lá na Amazônia, correndo o risco de ser picado por um veneno fatal ou um acidente na obra. Morreria. Lá não havia Hospital do Coração. Às vezes ele me irritava tremendamente com essa quase alienação. De repente, meu sogro gritou: Eu não disse? Eu não disse? Fechei a porta do quarto. Naquele momento eu queria acreditar em Deus. Precisava acreditar que havia uma justiça acima daquela junta militar, que durante mais de 20 anos pairara como nuvem negra sobre nossas cabeças. Apertei com força meu filho ao peito. Medo e solidão. Não queria a morte de Tancredo. Queria a certeza de um marido vivo e parceiro das minhas angústias.



Lourença Lou

sábado, 29 de setembro de 2018

LX

Final de segunda-feira. A chuva pesada ensopava nossas roupas e cadernos. Os granizos batiam em nossos casacos e nos ensurdeciam para o resto do mundo. A enxurrada era um rio onde brincávamos de equilibristas.
Passamos pelas mesmas vitrines da Afonso Pena, mas naquele dia não conseguimos namorar os chocolates embrulhados em papel dourado. Sabíamos que eles estavam lá. Um dos meninos gritou:
- Se a gente jogar uma pedra na vitrine quem vai descobrir que não foi a chuva?
Abaixamos. Nossas mãos, nadando cegas na água cor de carne, se fecharam em variados tamanhos de pedras. Jogamos. Uma acertou.
Na delegacia, todos éramos culpados. Admitimos de barriga cheia e sorriso nos olhos - apesar dos castigos que nos esperavam em casa.
No dia seguinte ainda não havíamos nos arrependido. De que outra forma nos empanturraríamos de chocolates da Kopenhagen?





LVII


Estava apaixonada por um disc-jockey da Rádio Tiradentes e achava que ele também estava por mim. Era alto, loiro e lindo. Fazia um programa jovem, para gente jovem. Todos os dias eu escrevia um texto que concorreria à escolha dele. E assim começou minha mania de me achar cronista. Amava escrever sobre coisas da adolescência, sobre livros, sobre rock’n roll e sobre minhas monumentais paixonites. Tudo recheado da minha indignação pelo regime que havia me tirado o pai. E ia pra porta da rádio, me juntar a um bando de outras adolescentes, para vê-lo chegar. Depois do habitual histerismo, ficávamos ali até ele entrar no ar e anunciar a crônica escolhida. Quase sempre era a minha e ele lia naquela voz que revolucionava  profundamente os meus hormônios. Elas saíam emburradas. Eu, cada vez mais sozinha. Não sabia lidar com meninas. Meninos eram meu desafio.

LVIII


Val gostava de vinho. Às vezes, até demais. Ela e Júnior tinham o hábito de tomar vinho às sextas, escutando uma boa música. Vez em quando convidavam amigos. Quase sempre eram os dois. E quase sempre o marido a levava para a cama. No dia seguinte, além da dor de cabeça só existiam névoas. Nos últimos tempos acordava com dores no corpo. Disse ao marido. - Deve ter dormido de mau jeito. - ele respondeu tranquilo. Os sábados passaram a ser doloridos. Todos eles. Ela começou a achar muito estranho. Já se acostumara a acordar com sêmen seco nos seios ou entre as pernas. Achava meio nojento, mas era próprio de homem essa coisa de não se segurar. Acordar com dor era diferente. Em um sábado, acordou também com uma dor terrível no ânus. Num clique, a verdade saltou. Seu marido a estava estuprando nas noites de sexta. Sexo não consensual era estupro - ela vivia dizendo às mulheres a quem atendia em seu consultório. Foi como um soco no estômago. Imediatamente tudo que sentia virou raiva. Quando ele chegou do futebol, comunicou: 
- Pegue suas malas e suma! 
Ele a olhou sem nada entender. Tentou beijá-la como sempre. Ela se esquivou. Em poucas palavras, disse a ele sobre suas descobertas e repetiu a decisão. Ele tentou discutir, justificar. 
- Ou você sai ou saio direto para a delegacia. 
Júnior estava embasbacado. Não entendia a radicalidade da mulher. Não fizera nada além do que faria qualquer marido. Val estava irredutível: 
- Até podemos conversar, mas não hoje, não agora. Estou me segurando para não te denunciar. Não quero te encontrar quando voltar. 
Pegou as chaves do carro e deu-lhe as costas.   

LIX

Era uma festa barulhenta, cheia de gente bonita e mil perfumes dançando no ar. Eu, enfastiada. De cheiros e de indolências. Estava em TPM emocional. No dia seguinte jorraria meu sangue na busca de uma assinatura. Selaria o destino do meu futuro profissional.Ele chegou desajeitado. Quase pedindo desculpas por existir. Olhei-o sem vontade. Descartei-o sem perdão.  E continuei ausente de tudo e de todos. Insistente, ele se fez presença. Com voz gaguejante fez uma pergunta. Não ouvi. Não quis. Mesmo sem querer, senti sua solidão.  Olhei de novo. Sua palidez me atingiu. Algo em mim se constrangeu. Cedi. Descobri, ele era viúvo. Carregava o fardo de um passado interrompido. Era um ex-amante que acreditara na eternidade. E agora estava buscando na sorte a sua atualização.  Olhei-o com vontade de gritar. Depois de um longo treinamento para amordaçar as emoções, estava eu ali quase oferecendo colo a um desconhecido. Saí sem me despedir. E nunca mais o esqueci. 


Lourença Lou









 Paulo Bentancur:Extremamente bem escrito. Genial! Lembra a psicologia de Proust. Não sabemos que ela tentou algo com ele, teve algo com ele ou não teve nada e desistiu antes de voltar atrás. O certo é que o poder de sugestão é fortíssimo. E esse “E nunca mais o esqueci” é fortíssimo.  PROJETO EXCELENTE E A LINGUAGEM ESTÁ EXUBERANTE. Obra-prima.

LVI


Os quase 2.000 km que me separavam do RS eram ansiedade. Depois de dois anos eu o conheceria. Quando o vi no aeroporto não acreditei. Sabia que nunca deveria esperar muito de perfis na internet. E não esperava mesmo. Fiquei paralisada como uma idiota sem ação. Ele não era ele. Enquanto se aproximava com um largo sorriso, pensei rapidamente. E enquanto eu pensava ele tomou a iniciativa. Beijou-me com força. Na boca. Agarrei-me em seu casaco. Pernas, parecia que nem tinha. Aos poucos me soltei do seu abraço e fui me recuperando. Que homem era aquele? O fogo dele quase derreteu minhas intenções. Eu só queria duas ou três noites e a Feira do Livro de Porto Alegre. Naquela mesma noite descobri. Ele queria muito mais. Queria uma eternidade que jamais existiria. 


Lourença Lou



Paulo Bentancur: Genial, desconcertante. Dois tipos de sonho, o da arte e o da sedução. O primeiro tem êxito, o segundo frustrado. 

LV


Sempre fui feminista. Participei de vários movimentos, obras sociais e o que aparecia em defesa da mulher. E brigava feio por qualquer sombra de discriminação, ainda que em brincadeiras, que meu marido e seus amigos fizessem. Meu discurso vivia na ponta da língua. Até conhecer Iolanda. Casada com um grande amigo, ela era a “Amélia” de Mário Lago. Fiquei chocada. Não entendia como ele, grande admirador das minhas lutas sociais, podia ser tão machista. Várias vezes falamos sobre isso, em todas as vezes ele me dizia que ela era, por opção, uma dona de casa e gostava de ser tratada assim – apesar de sua graduação em arquitetura. Chauvinista – era o que eu sempre pensava. Um dia eles nos convidaram para um fim de semana no sítio. Depois de dois dias naquele paraíso rural, entendi o que Rogério me dizia. Iolanda me colocou frente a um espelho, na maior classe. Descobri meu preconceito às avessas. Saí de lá com uma certeza: ela era muito mais dona de seu espaço do que eu jamais seria.



Lourença Lou

LIV


Trancoso foi escolha da maioria. Vínhamos de Airuoca, sul de Minas, onde congelamos por algum tempo. Sonhávamos com o mar e o clima quente do nordeste. Há muito queríamos conhecer mais este paraíso perdido. Juntamos as tralhas e fomos para a estrada. Enfrentamos um sem-número de dificuldades: caronas em caminhões, balsas, canoas, longas e penosas caminhadas a pé. Mas tínhamos em média 16 anos, sandálias de couro, flores nos cabelos, estrelas nos olhos e nosso lema era paz e amor. Não chegamos em Trancoso. Zé Roberto, um dos dois meninos do grupo, envolveu-se numa discussão para defender uma das meninas. O caminhoneiro que nos deu carona confundiu amor livre com estupro. Zé Roberto não era um lutador. Nós não sabíamos o que fazer ao ver sua cabeça sangrar. Corremos para rodeá-lo. Os olhos dele estavam abertos, mas ele já não nos via.


Lourença Lou

LIII


Foi numa fila do mercado. Minha vaidade, depois das várias cicatrizes deixadas pelo acidente, me atormentava, enquanto eu fingia ignorá-la. Atrapalhada como sempre, quase caí sobre um homem. Tentei algumas desculpas, mas ele sequer me olhou. Olhou meus pés como se fossem únicos no mundo.  E sutilmente os elogiou. Olhei-o surpresa. E surpresa, me deixei ser envolvida. Eu não só precisava como merecia ser paparicada – meu id me garantia. Papo vai, papo vem, descobri nas entrelinhas seu amor por pés. Viramos amigos. Depois, amigos bem íntimos. Foi um tempo em que me diverti inventando desejos quase impossíveis. E descobri o poder dos meus pés.



Lourença Lou

LII


Flertávamos. Se não era abertamente, também não era de todo escondido. Não fazíamos por mal. Ninguém faz. Era a luta irreverente dos hormônios de adultos, supostamente resolvidos, que voltavam com a força da adolescência. Nas rodas de amigos, na fazenda, em reuniões de família, na pista de corrida – as brincadeiras levavam pimenta. O tempero ia ficando cada vez mais picante. Um abraço displicente aqui, um brincar faminto de lábios ali. E dali para a loucura, sabíamos, seriam dois passos. Mas também sabíamos. Havíamos perdido o tempo da escolha. Nossos filhos eram como irmãos. Nossos companheiros não eram apenas como. Desistimos do desejo. Sobreviveu o amor. Porque amor não vivido se inscreve no eterno.



Lourença Lou

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

LI


Estávamos entrando na década de 90, vivendo a difícil redemocratização do país e o realinhamento da Educação no construtivismo de Piaget e na linha libertária de Paulo Freire. Era um privilégio ser professora de uma escola que resolveu bater de frente com o conservadorismo e apostar na inovação. Mas eu não era professora. Era a faz-tudo da instituição – por dentro, o cargo de diretora não tinha nenhum glamour. Trabalhava como uma moura. O pior era acordar assustada e atravessar a cidade para atender ao chamado da empresa de segurança, quase todas as noites. Eram sempre gatos, gatos, gatos. Uma noite, encontramos um outro tipo de gato. Enormes olhos escuros, boca carnuda, quarenta e poucos anos e ladrão. Quase desmaiei, como uma dama do século dezenove, ao reconhecê-lo. Era o meu gato de estimação. Tranquilamente ele explicou: cansei de te ver sair de madrugada. Resolvi ser causa ao invés de consequência.



Lourença Lou

L


Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos e inverteu a direção dos meus quereres. Uma escultura de praia, peito aberto à vida e um sem-fim de hormônios. Eu, ainda assustada com a força desconhecida da minha sexualidade pós-balzaquiana. Um interlúdio com gosto de ressaca marinha. Um batismo assim não se faz sem dor. Nem sem reinventar-se nos mais altos picos da sensualidade.

 Lourença Lou


Paulo Bentancur Grande comentário de mestreJosé Nunes da Silva! Sem tirar nem pôr. Recorto este trecho, coração do capítulo-confissão da irresistível série COISAS DE LOU, em sua XXV parte. Em forma de diário mesclado com a narrativa do miniconto. "Uma escultura de praia, peito aberto à vida e um sem-fim de hormônios. Eu, ainda assustada com a força desconhecida da minha sexualidade pós-balzaquiana." Não dá para não se deixar levar, todos nós - acredito. Beijos, beijos beijos, minha adorável, embriaguez na prosa e no poema, Lourença Lou. (Que detesta que eu a elogie, onde já se viu!... Vou ser obrigado a omitir seu talento?)




XLIX


Primeiro, a paixão nos tirou toda individualidade.  Respirávamos juntos. Aos poucos fomos nos vendo como casal. Inventamos de vestir um ao outro dos nossos desejos. E eram roupas tão lindas que acreditamos nas nossas invenções. Mas havia um limite até mesmo para a imaginação. A minha autoestima se rebelou. Eu não precisava dele para ser. Nem para me gostar. Doeu, mas o mastiguei e o cuspi da memória. Voltei a caminhar sem que o peso dele me fizesse rastejar. Foi quando descobri: liberdade não estava no voo, mas na coragem de voar.



Lourença Lou

XLVIII


Éramos amigas. Ela, negra, pobre, linda. Eu, uma rebelde cheia de causas. Ela queria ser doutora e mudar sua história. Eu queria ser guerrilheira e mudar a história do país. Sem uma vaga na faculdade pública, ela pagava seu curso com a beleza e a disponibilidade sexual. Cada saída era um abuso. Cada abuso era lágrimas escondidas. Aguentava, queria ser doutora. Eu não concordava, mas não tinha tempo para convencê-la. Tinha minhas batalhas a vencer. Um dia foi levada para fazer aborto. Ela era negra, pobre, grávida. Nunca mais a vi.


Lourença Lou

XLVII


Achávamos que era amor. A vontade de um entrava na vontade do outro. Tanto que doía. E nos perdíamos. Sem saber onde nem quando nem por quê. Não buscávamos saber. Éramos dois lagos separados pelos ressentimentos. Entre um e outro escorriam palavras e olhares e ódios. Dia sim no outro também. E os filhos boiavam no turvo destas águas. Não percebíamos. Achávamos que era amor. Apesar do amante. Apesar da amante. Apesar do secreto de cada um. E jogávamos as soluções para o dia seguinte. Sem investimentos. Como se amanhãs fossem feitos de milagres. Nenhum dos dois cedia. Achávamos que não perdíamos. Os filhos perdiam. E se perdiam. Atavam e desatavam seus laços. E seguíamos assim. Cada um passageiro de si. E todos nos cobrindo de nós.


Paulo Bentancur "Cada um passageiro de si", frase que sintetiza um casamento falido. E não apenas entre marido e mulher, mas os filhos, fatalmente, envolvidos nesse arquipélago de ilhas desertas. De segredos envenenados entre os dois "amores". Amor? Nem pensar. Uma fatia dura da realidade na qual o afeto já se perdeu, e há muito. COISAS DE LOU é capítulo de uma série de pequenos mas contundentes ou belos quadros da "vida como ela é". Lembra inclusive Nelson Rodrigues. Entre tantos gêneros praticados (e bem realizados) por Lourença Lou, este é dos que mais gosto. Talvez o meu preferido! Beijos da mais incondicional admiração.

XLVI


Éramos quatro e crescíamos sem mãe e sem pai. Ela havia morrido. Ele, cada dia mais ausente. Não entendíamos a vida que tínhamos. Ele tentou nos explicar. Disse que precisava defender nosso direito de ter um futuro. Continuávamos não entendendo. Todas as noites ele saía e chegava tarde. Um dia não voltou. Tempos depois apareceu. Tinha o olhar raivoso e as mãos machucadas. Algumas unhas lhe faltavam deixando os dedos com estranhas pontas vermelhas. A casa ganhou uma vida diferente. Não podíamos brincar, não podíamos correr, não podíamos perguntar, não podíamos quase nada. Uma noite a porta da casa foi arrombada. O som parecia a explosão de uma bomba em nossas cabeças. Homens enormes de botas pretas o levaram. Nunca mais voltou. Voltou seu corpo.

Lourença Lou

Paulo Bentancur A pesada sombra dos Anos de Chumbo ainda escurece nossas almas, nossa (des) esperança. COISAS DE LOU traz à tona o golpe militar que em 2014 completou 50 anos. Nunca, nenhum de nós, nem de nossas famílias nem de nosso amigos se recuperaram. Aconteceu tudo de ruim. Torturas para com elas convivermos durante a vida inteira. Assassinados a que apelidaram de "desaparecidos", e uma total falta de liberdade para pensar e manifestar o pensamento, que dirá criar no âmbito da arte. Escritores tiveram que reinventar um outro tipo de literatura, comprometida demais ao ponto de ser menos arte. Eis o contexto. E é nele que as famílias foram reféns como a jovem narradora conta aqui. E conta com uma emoção das mais fortes - a contida -, prisioneira de um luto de décadas. A começar, pela perda da força que lhe restara, o pai. Lourença Lou está realizando na série COISAS DE LOU seu projeto maior, segundo meu gosto pessoal e o de muitos. Uma prosa breve e certeira. A vida recuperada tal como se deu, mesmo quando profundamente agredida. Uma conficção de alto grau de literatura. Meu beijo de carinho e admiração

XLV


Equilibrando sobre os saltos maldisse minha vaidade. Era a primeira vez que usava o metrô e só não quebrava as pernas porque aquele mundo de gente me impedia até de respirar. Senti algo me incomodando nas costas. Pulsando. Tentei virar. Não conseguia sequer me mexer. Uma raiva foi me subindo. Lembrei-me de uma amiga. Ela sempre me dissera que nunca entrasse num metrô sem um alfinete em mãos. Não tinha alfinete, obviamente. Os saltos. Sim, duas armas! Tentei olhar para os pés. Duas armas inacessíveis. Não havia nenhuma chance de pegar os sapatos. De repente o trem parou. Sem escolha fui empurrada para a porta. Agarrei-me ao primeiro que consegui para não ser jogada para fora. – Não adianta me agarrar, moça. Vou descer aqui. Mas adorei o seu perfume. – Engasguei. Tossi. Quase vomitei. Tranquilamente a voz irônica desceu. Paralisada, o vi piscar desavergonhadamente. Se raiva matasse, eu morreria engasgada. 

Lourença Lou

Paulo Bentancur A situação, seja qual for, comum ou odiosa, entra no elemento da temática. Ora, o que importa é a arte que a escritora sua sangue perseguindo. Para chegar à tal alto grau de literariedade, precisa atingir os mais preciosos conteúdos da linguagem narrativa. É o que Lourença Lou consegue! E só por isso seu texto nos "ganha", nos seduz como leitores para acompanhá-lo com interesse. A atmosfera da situação, sua intensidade e/ou força, sua sugestão pelo modo específico com que a escritora constrói seu miniconto/crônica, isto é que faz da literatura grande ou discutível arte verbal. O nome dado a isto (já me repito) é ESTILO. E Lourença Lou tem estilo, isto é, TEM TUDO! Beijos, querida talentosa.

Que que eu posso dizer de diferente no plano crítico? Diferente o texto é, já que cada texto tem a sua particularidade, a sua trama ou reflexão. Mas acontece que a série COISAS DE LOU é tão homogênea na forma (estrutura do texto, ritmo, linguagem) e até a multiplicidade de temas sustenta o homogêneo porque a temática alimenta a conficção e com isso o projeto não perde o equilíbrio, o estilo, a consistência JAMAIS! O que muda, às vezes, é que um texto dói em nós e outro vem carregado de um humor que nos desafia É o caso deste. SEMPRE BOM, Lou, não erras a pontaria nunca. Beijos de admiração.

XLIV


A barriga da mãe crescia e ela sumia cada vez mais da nossa vida. Seu quarto vivia na penumbra. Vez ou outra, vinha um médico. Quase sempre, enfermeiras. A casa cheirava a remédio e tristeza. Um dia ela se foi. Veio a tia e abriu todas as janelas. Pôs flores nos vasos, coloriu as camas e a casa ganhou cheiro de alfazema. Nada disso mudou nossa vida. Continuava doendo nos quatro, a falta que a mãe fazia. A tia estava mais preocupada com os homens que passavam pela janela. Fomos ficando solitários. E rebeldes. A tia foi ficando cada vez mais amarga. E impaciente. Um dia ela ficou histérica. Gritou, xingou e terminou prendendo as mãos da caçula nos pés da mesa. Nós nos encolhemos em volta dela. Ficamos ali chorando baixinho. Ficamos ali até a chegada do pai. Nunca mais a vimos. Virei a mãe da família. E ainda nem tinha seios na magreza dos meus sete anos. Mas sabia inventar histórias de um mundo que não conhecia.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Agora entendo a tua poesia, Lourença Lou, a multiplicidade do teu projeto poético, as centenas de poemas excepcionais (todos filhos também), e mais os três filhos reais que tens! E tua energia, e tua disposição para a luta diariamente! E tua amizade comigo, irreparável, há 3 anos... Tu és mais que uma grande artista, uma grande mulher, muito mais! TU ÉS UMA MÃE! E eu te felicito pelo dia de hoje, queridona... Beijos, beijos, beijos.

XLIII


Ricardo, nosso porteiro, chegou quase sem fôlego à porta da minha sala. – A senhora precisa ir correndo lá no portão. Eles estão pisando no pescoço do menino. Não sei o que pensei. Corri sobre meus saltos altos – não era hora de imaginar o ridículo da situação. Um verdadeiro tumulto me esperava na porta da escola. Um grupo de alunos mostrava a diferença de serem nossos alunos: questionavam o abuso de autoridade do PM que literalmente prendia no chão o corpo de um pretenso ladrão. De novo, não pensei. A situação era tão gritante que só me lembro de exigir que ele tirasse a enorme bota daquele pescoço que parecia ser ainda infantil. Ele me olhou como se eu não soubesse o que estava dizendo. Usei de toda autoridade que pudesse ser expressada em gestos e atitudes. Ele tirou o pé e levantou o garoto. Pedi aos alunos que entrassem e escutei o policial. Depois de saber o que estava acontecendo, me vi entre a piedade e a indignação. – Como você se chama? A mão do policial o impedia de responder. Antes que pedisse, ele afrouxou a gravata. Foi o suficiente. Como se fosse um réptil, o danado escorregou pra fora do abraço. Acompanhei a corrida dos dois já imaginando o que iria acontecer. Entrei antes que eles chegassem à esquina. Não tinha estômago pra ser repressora. Escolhi ser educadora.

Lourença Lou

Paulo Bentancur:Excelente com forte conteúdo político e social sem cair em momento algum no panfleto. Na medida.

XLII


Estudávamos no mesmo colégio. Eu no colegial, ele no ginasial. Eu era uma mulher aos quinze, ele um bebê aos treze anos. Estava apaixonada por um padre. Ele, apaixonado por mim. Detestava tudo nele, especialmente a mania de ficar me olhando e me seguindo.. Perdi a conta das vezes em que o mandei crescer e aparecer. Ele insistia, eu o maltratava. Até que ele se cansou. Sumiu. Fiquei anos sem saber dele. Um dia reapareceu. Eu era diretora da escola. Ele o candidato a professor de inglês, recém-chegado da Grã-Bretanha  Um baita homem, em todos os aspectos. Virou alvo da imensa população feminina. Desde o início estabelecemos uma relação respeitosa, mas distante. Nunca falamos do passado. Com a convivência fui começando a admirá-lo. Um dia descobri que a admiração havia virado tesão. Fêmea, iniciei o jogo da sedução. Um jogo que joguei sozinha.  Nunca soube se ele não percebeu meu interesse ou se não quis perceber. Os três últimos meses do ano pareceram séculos. Nunca havia sido ignorada. Estava resolvido. Eu o demitiria. Mas algo deu errado na minha equação. Não fui reeleita. Pedi demissão. 



Lourença Lou


Paulo Bentancur Uma variante jogada amorosa exuberante. Do começo ao fim. Desfecho desconcertante. Genial. 

XLI


O grito do telefone entrou em mim estraçalhando minha pouca segurança. Que notícia boa chegaria às 23:45h? Fiquei paralisada permitindo que o som estridente inserisse em meu medo situações inimagináveis. Estava sozinha em casa. Nenhuma outra mão além da minha para levantar aquele fone. Nenhum abraço para me ajudar a enfrentar meus dragões e suas línguas de fogo. Uma voz nervosa perguntou por um nome. – Não é daqui – balbuciei a custo. Era engano. Não era da clínica onde ele, meu filho, estava. Nem da polícia. Nem do hospital. Nem era nenhum fantasma encomendado para me assombrar. Me joguei no sofá. Reconheci. Meus fantasmas estavam dentro de mim. Um dia eu os mataria.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Excelente miniconto escrito num tom de sugestiva e penumbrosa atmosfera. Há uma mescla de contundência e de enorme sugestão. Sim, o texto é autobiográfico, mas o brilhante ritmo narrativo é tipicamente ficcional. Magnífico, queridaLourença Lou... Beijos e boa-noite.

XL

Meus amigos tomavam cuba libre. Eu tomava coca cola. Álcool sempre foi uma intolerância inexplicável. Também não gostava de namorar. Gostava de escolher a paquera da noite. Depois de algumas horas na “discoteca”, sobrava pouca escolha. A maioria ficava bêbada e chata. Às vezes pintava discussão por qualquer coisa. Era sempre eu a separar. Quando Rui, o namorado, se achou de bater na cara de Nina, a namorada, nem pensei. Fiz o mesmo com ele. A discussão polarizou-se. Depois disso, nossa turma se dividiu. Nina nunca mais falou comigo. Rui resolveu se apaixonar pelo meu tapa.

Lourença Lou

XXXIX


Era início do novo milênio, mas parte de mim ainda estava em fins dos anos setenta. Toda vez que uma atitude política ameaçava agredir a Democracia, me arrepiava. Toda vez que escutava ou lia “Ditadura nunca mais”, me arrepiava. É que para alguns de nós, ditadura foi mais do que uma parte da História do Brasil. Foi ser arrastado da cama durante a noite, ter as unhas arrancadas, ser mergulhado nu em água gelada, ter os órgãos genitais ligados a fios elétricos e mais uma infinidade de tentativas de lobotomizar ou exterminar os inimigos da pátria. Ditadura foi as trevas bíblicas concretizadas. Era só o início de um novo milênio e eu já me arrepiava.


Lourença Lou

XXXVIII


Ter momentos de despertencimento já era natural. Era quando virava um pote de sensibilidades – tudo me atingia. Tudo o que antes era força, de repente se transformava em fragilidades. Perdia toda a vontade de ser sociável. E antes que eu virasse fera, pedia um tempo à vida. Durava pouco. As palavras rasgavam meu silêncio, o sangue voltava a pulsar em forma de escrita. O que era chatice virava alegria. Sem que eu me percebesse, estava outra vez em busca de salvação. E a vida virava poesia.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Maravilha de texto, quase um poema em prosa, misto de conficção liricizada. Continuo em Brasília, Lou! Volto no domingo. Saudade das pessoas e nenhuma do frio. Beijo!

XXXVII


Sábado, oito e trinta da manhã. O celular me acordou com aquele tom estridente que me esqueci de trocar. Tive vontade de gritar. Sempre detestei ser acordada assim. Entre a vontade de voltar a dormir e o sol brigando com o vento na cortina, me lembrei. Era aniversário da Luna, a cadela Shitsu do meu filho, companheira de seus mais difíceis momentos. Muitas vezes, única companheira em sua difícil caminhada sem as drogas. Respirei fundo. Juntei minha voz à dele e cantamos "Parabéns pra você" enquanto ela latia feliz. Os leões, deixei para matar mais tarde.

Lourença Lou

XXXVI


Sempre fui meio malévola, meio rocha. Mas mesmo as mulheres-maravilhas um dia sucumbiam. As notícias ruins vinham uma atrás da outra. Fragilidades no coração. A filha grávida sendo assaltada. O filho que de tempos em tempos me trazia dor e preocupação. E, para piorar, uma sequência de mortes inesperadas. Não quaisquer mortes. Um amigo querido. O parceiro de tantas fantasias. O amigo e mestre com quem trocara experiências nos últimos 3 anos. Fosse religiosa, feriria os joelhos ou choraria contas de rosário. Houve momentos em que  quis desistir. Mas desistir de quê? Depois de tudo que vivi, não podia me entregar sem lutar. Lutei contra as correntezas. Sabia que haveria outras e nem sempre encontraria um barco. Mas navegar era preciso – disse o poeta – e sempre acreditei nele.



Lourença Lou

XXXV

Olhamo-nos de viés. Entre nós as lágrimas guardadas, as mágoas escondidas, a vida aos pedaços. E o adeus. Olhos presos numa corrente de elos infinitos, adivinhando a falta que se esconderia em cada elo que nos restasse. Ele se virou. Rompeu-se a corrente. Silenciosamente fechou a porta e o fim desenhou-se à minha frente. Abracei-me. Garganta fechada, estômago contraído. Olhei em volta do quarto, escutando a mudez do armário, das gavetas, dos travesseiros. Iniciei uma dança lenta, meio louca, meio perdida. E um riso baixo. Depois rodopiei. Gargalhei. Mais alto. Mais rápido. Mais alto. Mais rápido. Até que nada mais havia além do eco daquele estranhamento. E o corpo caído sobre a cama. E o choro seco. E o silêncio no corpo. Até renascer com a manhã. A vida continuaria[p1] 

Paulo  Bentancur: Brilhante. Bom demais. Jogo do paradoxo. Inusitado. Gostei muito!

XXXIV


Era jovem, cheia de sonhos e nenhum dinheiro no bolso da calça jeans. Fui ser recepcionista num escritório de dois advogados – marido e mulher. Ao final da primeira semana eu já estava odiando os olhares e os leves esbarrões do patrão. Precisava trabalhar. Na segunda semana comecei a odiar minhas coxas grossas. Precisava trabalhar. Mas tudo virou susto e choro quando o patrão não se segurou: sua mão entrou entre minhas pernas e minha mão direita marcou seu rosto muito branco. Fui sumariamente demitida pela patroa. Pelo comprimento das saias que não combinavam com a seriedade do escritório.


Lourença Lou

XXXIII


Eram três da manhã e eu ainda não havia dormido. O sono deixava de existir sempre que aquele pedaço de mim se perdia. E cada vez, menos sonho. E mais ausências. E mais pesadelos. Um dia veio o som da campainha. Meu coração desmaiou pra logo em seguida acordar numa corrida desabalada. A morte era o medo que rondava as minhas madrugadas. A casa inteira correu para a porta. Era um policial. Olhei através dele. Lá estava meu menino perdido. Dentro da viatura. Com um corte na cabeça por onde a vida escorria. Olhei-o através da dor. Meu medo não era mais da morte. Era de uma vida não vivida.



Lourença Lou

XXXII


Éramos amigas. Ela, negra, pobre, linda. Eu, uma rebelde cheia de causas. Ela queria ser doutora e mudar sua história. Eu queria ser guerrilheira e mudar a história do país. Sem uma vaga na faculdade pública, ela pagava seu curso com a beleza e a disponibilidade sexual. Cada saída era um abuso. Cada abuso era lágrimas escondidas. Aguentava, queria ser doutora. Eu não concordava, mas não tinha tempo para convencê-la. Tinha minhas batalhas a vencer. Um dia foi levada para fazer aborto. Ela era negra, pobre, grávida. Nunca mais a vi.


Lourença Lou

XXXI


Era pouco mais que um garoto. Mas como eu, amava os Beatles, os Rolling Stones e não tinha medo de ser feliz. Fomos para Londres. Ele, orgulhoso, se esforçava para me mostrar a cidade que tão bem conhecera, nos mais de três anos que passara na UCL. O cenário ajudava, mas não era o que mais me atraía. Teríamos tido dias deslumbrantes ainda que fosse em Trancoso, no Pantanal ou em Santiago. Ele me seduzia, mexia terrivelmente com os meus parcos hormônios. E parecia nem perceber. Esforçava-se para me mostrar Kensington, Camdem Town e mil outras Londres que eu sempre quis conhecer. Mas eu estava mergulhada nos olhos, no cheiro, nele todo. Foram dias em que flutuei. Definitivamente, flutuei com ele. E desta vez, deixei que flutuasse sobre mim.



Lourença Lou

XXX


Comecei a trabalhar com quatorze anos. Escondida do meu avô - como se possível fosse. Vô Chico só permitia que as mulheres da família entrassem no mercado de trabalho depois de formadas. Fui ser recepcionista de uma clínica de olhos. No dia seguinte ele descobriu. Tive que negociar minha liberdade. Aceitei ser professora quando o que mais queria era ser aviadora. Nasci com asas nos meus sonhos.



Lourença Lou

XXIX


Éramos amigos, cúmplices, compadres, sócios e, inevitavelmente, meio apaixonados. Trabalhávamos bastante, mas também nos divertíamos quase sempre juntos – minha família e a dele. Nos últimos tempos, com a crise político-econômica do país e os problemas com meu filho, eu andava desanimada. Ele, ao contrário, cheio de energia. É na crise que os fortes sobrevivem – me dizia. E inventou criar uma nova empresa e me arrastar para a sociedade. Meu impulso inicial foi dizer não, mas eu me mataria antes de fugir a um desafio! E começamos um novo empreendimento. Dois meses depois ele foi internado às pressas. Um silencioso e fulminante câncer no fígado levou-o. E levou mais um pedaço de mim.



Lourença Lou

XXVIII


Eu a vi assim que entrei. Olhar perdido no fundo do salão como se nada mais existisse além da incredulidade que a paralisava. Perder mãe é um desvio de rota quase fatal. É injusto que num coração pequeno tenha que caber tanta falta. A dor dela doía em mim, mas eu sabia que ela seguiria seu caminho. Porque viver, viver seria imperiosamente necessário. E aprenderia, como eu, que amor não é dado de graça. Só amor de mãe.

Lourença Lou


Paulo Bentancur COISAS DE LOU é uma série muito séria, no sentido de um projeto profundo, de enorme consistência, tomado de vida, e vida intensíssima. Mesmo quando, neste episódio, haja a imperdoável entrada em cena da não convidada morte. Ainda mais na situação com que a narradora se depara: uma meninina que acaba de perder a mãe! A ótima leitora Gratia Cynthia, em seu elogio ao estilo de Lourença Lou, parece estar se referindo a este trecho, por exemplo: "Perder mãe é um desvio de rota quase fatal. É injusto que num coração pequeno tenha que caber tanta falta." Fosse eu continuar a citar outros trechos tão eufônicos, repetia o texto inteiro. E são apenas seis linhas! Fica para sempre, como uma sentença brutal, a constatação de que durante a vida espera essa criança o duríssimo aprendizado: "amor não é dado de graça. Só amor de mãe." Emoção inestancável na maior síntese. Beijos, querida amiga, parceira Lou, carinho, admiração.


XXVII


Perda de marido além de doloroso, é a maior quebra de rotina que existe. Tira a gente do ar. Incomoda. A gente fica entre matá-lo outra vez e chorar a seco a sua falta.  Meu marido foi sem minha permissão. Me pegou de surpresa. O mundo caiu sobre minha cabeça e tive que carregá-lo, como uma deusa Atlas moderna. Sobrou assumir toda a nossa empresa, com suas dores e suas delícias. E as compras em supermercados – de longe o que eu mais detestava!



Lourença Lou

XXVI


Todos os dias ele me olhava do mesmo jeito, sorria o mesmo sorriso, cantava a mesma cantada. Todos os dias eu lhe fazia caretas, mandava crescer, dava-lhe a mesma gargalhada. Um dia ele inovou: inventou-me musa e deitou-me em versos banais. Me senti Carolina de Chico e quase me esqueci na janela. Mas só até me lembrar: entre eu e ele muitas bandas iriam passar.

Louença Lou




XXV


Abraçando-se, sorria e balançava-se feliz. Os olhos, brilhantes jabuticabas, passeavam entre os meus e o grande embrulho colorido ao pé da árvore. Esperava meu sinal. – Vá. Pode pegar os presentes. – Lentamente se abaixou. Com um cuidado imenso, pegou o embrulho e levou-o a um canto da sala. Paramos todos para olhá-lo. Ele era todo um imenso sorriso. Entre suas perninhas surgiu um grande caminhão de bombeiros. Bateu palmas. Depois as pequenas mãos começaram as descobertas. Luzes se acenderam, sirene gritou e o caminhão saiu de dentro do seu pacote. Sorridente, abriu todos os outros presentes. Chamei-o para cear. Não quis. Sua fome, olhos, boca e sentidos estavam naqueles brinquedos coloridos que nunca tivera. Dormiu cercado por eles. No dia seguinte, minha filha o levou. Seu olhar era uma mistura de encantamento e despedida. O meu, ardência e calmaria. Era natal.


Lourença Lou

Paulo Bentancur A beleza inicial narrada no episódio XXV de COISAS DE LOU (irresistível série de uma espécie de minicontos de tom autobiográfico e atmosfera ficcional) se soma a uma delicada emoção inevitável quando o protagonista é uma criança e a natureza mágica de seus desejos (brincar) sendo atendida. Ainda mais num evento emblemático como o Natal. Mas quem escreve com essa síntese (a adensar mais ainda o impacto psicológico, o encantamento e a subsequente contundência) é Lourença Lou, com sua prosa de quem também, na poesia, vai longe e sempre impecável no ritmo e sem nunca abrir mão da brevidade. Prosa certeira e eufônica, entre a força de um lirismo que sacode o leitor. A contundência principal é o desfecho. Brinquedos na mão, o menino é levado embora no dia seguinte. Mistura êxtase e essa sutil amargura da despedida. Quanto à testemunha da narradora, que certamente o trouxe de alguma instituição para passar aquela noite, "ardência" (prenúncia do pranto) e "calmaria" - porque, humaníssima, deu-se também um belíssimo presente, realizando o mais pleno imaginário de um menino que de outra forma passaria uma noite precária, sem sonho algum, e, menos ainda, sem nenhuma realidade tomada de exuberância. Tocante demais, Lou. Tua série, para meu gosto, já é um êxito. Beijos, carinho, admiração.


XXIV


Era professor de História Antiga. Brilhante e cafajeste – aquele tipo que apaixona grande parte das mulheres. Nossa relação foi de encantamento. Durante um tempo nos completamos - ambos numa busca feroz do puro prazer. Fomos aprendizes um do outro. Desvendamos os meandros da carne e nos aventuramos em inúmeros embates do intelecto. Até descobrirmos: éramos apenas contendores a quem só interessava a vitória. E no amor era preciso aprender a perder, ainda que perder-se um no outro.

Lourença Lou


Paulo Bentancur Notícia ótima! COISAS DE LOU atinge seu XXiV capítulo, o que comprova que o (ótimo) projeto tem fôlego. A série de minicontos na forma e, na atmosfera, entre o confessionalismo e a ficção, é nada menos que uma delícia. Ágil na alta temperatura emocional - à qual o leitor se entrega totalmente - e vazada num estilo invejável, a chamada poesia da prosa. Lourença Lou, poeta que está sempre na minha lista das inadiáveis, é uma narradora de uma rara fidelidade à trama que constrói com elipses, com apurado ritmo tanto estilístico quanto psicológico. Neste capítulo específico ela acerta tão bem no tempero que o leitor levanta da cadeira. E volta a ler tudo de novo, agora em pé. Beijos de carinho e admiração, queridíssima Lou

XXIII


Ela tinha 15 anos quando me mandou um bilhete dizendo: Não preciso de uma amiga. Tenho todas que escolhi. Preciso e quero uma mãe. Não chorei porque não sabia chorar. Mas doeu profundamente. A minha geração derrubou todas as regras que até então organizavam as relações familiares porque as considerávamos conservadoras e patriarcais. Mas não estávamos conseguindo ocupar os espaços vazios.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Bingo! Que observação vital, decisiva, bonita, um rito de passagem registrado pela poeta-mãe Lourença Lou! Beijos, querida


L

Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos ...