sexta-feira, 28 de setembro de 2018

LI


Estávamos entrando na década de 90, vivendo a difícil redemocratização do país e o realinhamento da Educação no construtivismo de Piaget e na linha libertária de Paulo Freire. Era um privilégio ser professora de uma escola que resolveu bater de frente com o conservadorismo e apostar na inovação. Mas eu não era professora. Era a faz-tudo da instituição – por dentro, o cargo de diretora não tinha nenhum glamour. Trabalhava como uma moura. O pior era acordar assustada e atravessar a cidade para atender ao chamado da empresa de segurança, quase todas as noites. Eram sempre gatos, gatos, gatos. Uma noite, encontramos um outro tipo de gato. Enormes olhos escuros, boca carnuda, quarenta e poucos anos e ladrão. Quase desmaiei, como uma dama do século dezenove, ao reconhecê-lo. Era o meu gato de estimação. Tranquilamente ele explicou: cansei de te ver sair de madrugada. Resolvi ser causa ao invés de consequência.



Lourença Lou

L


Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos e inverteu a direção dos meus quereres. Uma escultura de praia, peito aberto à vida e um sem-fim de hormônios. Eu, ainda assustada com a força desconhecida da minha sexualidade pós-balzaquiana. Um interlúdio com gosto de ressaca marinha. Um batismo assim não se faz sem dor. Nem sem reinventar-se nos mais altos picos da sensualidade.

 Lourença Lou


Paulo Bentancur Grande comentário de mestreJosé Nunes da Silva! Sem tirar nem pôr. Recorto este trecho, coração do capítulo-confissão da irresistível série COISAS DE LOU, em sua XXV parte. Em forma de diário mesclado com a narrativa do miniconto. "Uma escultura de praia, peito aberto à vida e um sem-fim de hormônios. Eu, ainda assustada com a força desconhecida da minha sexualidade pós-balzaquiana." Não dá para não se deixar levar, todos nós - acredito. Beijos, beijos beijos, minha adorável, embriaguez na prosa e no poema, Lourença Lou. (Que detesta que eu a elogie, onde já se viu!... Vou ser obrigado a omitir seu talento?)




XLIX


Primeiro, a paixão nos tirou toda individualidade.  Respirávamos juntos. Aos poucos fomos nos vendo como casal. Inventamos de vestir um ao outro dos nossos desejos. E eram roupas tão lindas que acreditamos nas nossas invenções. Mas havia um limite até mesmo para a imaginação. A minha autoestima se rebelou. Eu não precisava dele para ser. Nem para me gostar. Doeu, mas o mastiguei e o cuspi da memória. Voltei a caminhar sem que o peso dele me fizesse rastejar. Foi quando descobri: liberdade não estava no voo, mas na coragem de voar.



Lourença Lou

XLVIII


Éramos amigas. Ela, negra, pobre, linda. Eu, uma rebelde cheia de causas. Ela queria ser doutora e mudar sua história. Eu queria ser guerrilheira e mudar a história do país. Sem uma vaga na faculdade pública, ela pagava seu curso com a beleza e a disponibilidade sexual. Cada saída era um abuso. Cada abuso era lágrimas escondidas. Aguentava, queria ser doutora. Eu não concordava, mas não tinha tempo para convencê-la. Tinha minhas batalhas a vencer. Um dia foi levada para fazer aborto. Ela era negra, pobre, grávida. Nunca mais a vi.


Lourença Lou

XLVII


Achávamos que era amor. A vontade de um entrava na vontade do outro. Tanto que doía. E nos perdíamos. Sem saber onde nem quando nem por quê. Não buscávamos saber. Éramos dois lagos separados pelos ressentimentos. Entre um e outro escorriam palavras e olhares e ódios. Dia sim no outro também. E os filhos boiavam no turvo destas águas. Não percebíamos. Achávamos que era amor. Apesar do amante. Apesar da amante. Apesar do secreto de cada um. E jogávamos as soluções para o dia seguinte. Sem investimentos. Como se amanhãs fossem feitos de milagres. Nenhum dos dois cedia. Achávamos que não perdíamos. Os filhos perdiam. E se perdiam. Atavam e desatavam seus laços. E seguíamos assim. Cada um passageiro de si. E todos nos cobrindo de nós.


Paulo Bentancur "Cada um passageiro de si", frase que sintetiza um casamento falido. E não apenas entre marido e mulher, mas os filhos, fatalmente, envolvidos nesse arquipélago de ilhas desertas. De segredos envenenados entre os dois "amores". Amor? Nem pensar. Uma fatia dura da realidade na qual o afeto já se perdeu, e há muito. COISAS DE LOU é capítulo de uma série de pequenos mas contundentes ou belos quadros da "vida como ela é". Lembra inclusive Nelson Rodrigues. Entre tantos gêneros praticados (e bem realizados) por Lourença Lou, este é dos que mais gosto. Talvez o meu preferido! Beijos da mais incondicional admiração.

XLVI


Éramos quatro e crescíamos sem mãe e sem pai. Ela havia morrido. Ele, cada dia mais ausente. Não entendíamos a vida que tínhamos. Ele tentou nos explicar. Disse que precisava defender nosso direito de ter um futuro. Continuávamos não entendendo. Todas as noites ele saía e chegava tarde. Um dia não voltou. Tempos depois apareceu. Tinha o olhar raivoso e as mãos machucadas. Algumas unhas lhe faltavam deixando os dedos com estranhas pontas vermelhas. A casa ganhou uma vida diferente. Não podíamos brincar, não podíamos correr, não podíamos perguntar, não podíamos quase nada. Uma noite a porta da casa foi arrombada. O som parecia a explosão de uma bomba em nossas cabeças. Homens enormes de botas pretas o levaram. Nunca mais voltou. Voltou seu corpo.

Lourença Lou

Paulo Bentancur A pesada sombra dos Anos de Chumbo ainda escurece nossas almas, nossa (des) esperança. COISAS DE LOU traz à tona o golpe militar que em 2014 completou 50 anos. Nunca, nenhum de nós, nem de nossas famílias nem de nosso amigos se recuperaram. Aconteceu tudo de ruim. Torturas para com elas convivermos durante a vida inteira. Assassinados a que apelidaram de "desaparecidos", e uma total falta de liberdade para pensar e manifestar o pensamento, que dirá criar no âmbito da arte. Escritores tiveram que reinventar um outro tipo de literatura, comprometida demais ao ponto de ser menos arte. Eis o contexto. E é nele que as famílias foram reféns como a jovem narradora conta aqui. E conta com uma emoção das mais fortes - a contida -, prisioneira de um luto de décadas. A começar, pela perda da força que lhe restara, o pai. Lourença Lou está realizando na série COISAS DE LOU seu projeto maior, segundo meu gosto pessoal e o de muitos. Uma prosa breve e certeira. A vida recuperada tal como se deu, mesmo quando profundamente agredida. Uma conficção de alto grau de literatura. Meu beijo de carinho e admiração

XLV


Equilibrando sobre os saltos maldisse minha vaidade. Era a primeira vez que usava o metrô e só não quebrava as pernas porque aquele mundo de gente me impedia até de respirar. Senti algo me incomodando nas costas. Pulsando. Tentei virar. Não conseguia sequer me mexer. Uma raiva foi me subindo. Lembrei-me de uma amiga. Ela sempre me dissera que nunca entrasse num metrô sem um alfinete em mãos. Não tinha alfinete, obviamente. Os saltos. Sim, duas armas! Tentei olhar para os pés. Duas armas inacessíveis. Não havia nenhuma chance de pegar os sapatos. De repente o trem parou. Sem escolha fui empurrada para a porta. Agarrei-me ao primeiro que consegui para não ser jogada para fora. – Não adianta me agarrar, moça. Vou descer aqui. Mas adorei o seu perfume. – Engasguei. Tossi. Quase vomitei. Tranquilamente a voz irônica desceu. Paralisada, o vi piscar desavergonhadamente. Se raiva matasse, eu morreria engasgada. 

Lourença Lou

Paulo Bentancur A situação, seja qual for, comum ou odiosa, entra no elemento da temática. Ora, o que importa é a arte que a escritora sua sangue perseguindo. Para chegar à tal alto grau de literariedade, precisa atingir os mais preciosos conteúdos da linguagem narrativa. É o que Lourença Lou consegue! E só por isso seu texto nos "ganha", nos seduz como leitores para acompanhá-lo com interesse. A atmosfera da situação, sua intensidade e/ou força, sua sugestão pelo modo específico com que a escritora constrói seu miniconto/crônica, isto é que faz da literatura grande ou discutível arte verbal. O nome dado a isto (já me repito) é ESTILO. E Lourença Lou tem estilo, isto é, TEM TUDO! Beijos, querida talentosa.

Que que eu posso dizer de diferente no plano crítico? Diferente o texto é, já que cada texto tem a sua particularidade, a sua trama ou reflexão. Mas acontece que a série COISAS DE LOU é tão homogênea na forma (estrutura do texto, ritmo, linguagem) e até a multiplicidade de temas sustenta o homogêneo porque a temática alimenta a conficção e com isso o projeto não perde o equilíbrio, o estilo, a consistência JAMAIS! O que muda, às vezes, é que um texto dói em nós e outro vem carregado de um humor que nos desafia É o caso deste. SEMPRE BOM, Lou, não erras a pontaria nunca. Beijos de admiração.

XLIV


A barriga da mãe crescia e ela sumia cada vez mais da nossa vida. Seu quarto vivia na penumbra. Vez ou outra, vinha um médico. Quase sempre, enfermeiras. A casa cheirava a remédio e tristeza. Um dia ela se foi. Veio a tia e abriu todas as janelas. Pôs flores nos vasos, coloriu as camas e a casa ganhou cheiro de alfazema. Nada disso mudou nossa vida. Continuava doendo nos quatro, a falta que a mãe fazia. A tia estava mais preocupada com os homens que passavam pela janela. Fomos ficando solitários. E rebeldes. A tia foi ficando cada vez mais amarga. E impaciente. Um dia ela ficou histérica. Gritou, xingou e terminou prendendo as mãos da caçula nos pés da mesa. Nós nos encolhemos em volta dela. Ficamos ali chorando baixinho. Ficamos ali até a chegada do pai. Nunca mais a vimos. Virei a mãe da família. E ainda nem tinha seios na magreza dos meus sete anos. Mas sabia inventar histórias de um mundo que não conhecia.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Agora entendo a tua poesia, Lourença Lou, a multiplicidade do teu projeto poético, as centenas de poemas excepcionais (todos filhos também), e mais os três filhos reais que tens! E tua energia, e tua disposição para a luta diariamente! E tua amizade comigo, irreparável, há 3 anos... Tu és mais que uma grande artista, uma grande mulher, muito mais! TU ÉS UMA MÃE! E eu te felicito pelo dia de hoje, queridona... Beijos, beijos, beijos.

XLIII


Ricardo, nosso porteiro, chegou quase sem fôlego à porta da minha sala. – A senhora precisa ir correndo lá no portão. Eles estão pisando no pescoço do menino. Não sei o que pensei. Corri sobre meus saltos altos – não era hora de imaginar o ridículo da situação. Um verdadeiro tumulto me esperava na porta da escola. Um grupo de alunos mostrava a diferença de serem nossos alunos: questionavam o abuso de autoridade do PM que literalmente prendia no chão o corpo de um pretenso ladrão. De novo, não pensei. A situação era tão gritante que só me lembro de exigir que ele tirasse a enorme bota daquele pescoço que parecia ser ainda infantil. Ele me olhou como se eu não soubesse o que estava dizendo. Usei de toda autoridade que pudesse ser expressada em gestos e atitudes. Ele tirou o pé e levantou o garoto. Pedi aos alunos que entrassem e escutei o policial. Depois de saber o que estava acontecendo, me vi entre a piedade e a indignação. – Como você se chama? A mão do policial o impedia de responder. Antes que pedisse, ele afrouxou a gravata. Foi o suficiente. Como se fosse um réptil, o danado escorregou pra fora do abraço. Acompanhei a corrida dos dois já imaginando o que iria acontecer. Entrei antes que eles chegassem à esquina. Não tinha estômago pra ser repressora. Escolhi ser educadora.

Lourença Lou

Paulo Bentancur:Excelente com forte conteúdo político e social sem cair em momento algum no panfleto. Na medida.

XLII


Estudávamos no mesmo colégio. Eu no colegial, ele no ginasial. Eu era uma mulher aos quinze, ele um bebê aos treze anos. Estava apaixonada por um padre. Ele, apaixonado por mim. Detestava tudo nele, especialmente a mania de ficar me olhando e me seguindo.. Perdi a conta das vezes em que o mandei crescer e aparecer. Ele insistia, eu o maltratava. Até que ele se cansou. Sumiu. Fiquei anos sem saber dele. Um dia reapareceu. Eu era diretora da escola. Ele o candidato a professor de inglês, recém-chegado da Grã-Bretanha  Um baita homem, em todos os aspectos. Virou alvo da imensa população feminina. Desde o início estabelecemos uma relação respeitosa, mas distante. Nunca falamos do passado. Com a convivência fui começando a admirá-lo. Um dia descobri que a admiração havia virado tesão. Fêmea, iniciei o jogo da sedução. Um jogo que joguei sozinha.  Nunca soube se ele não percebeu meu interesse ou se não quis perceber. Os três últimos meses do ano pareceram séculos. Nunca havia sido ignorada. Estava resolvido. Eu o demitiria. Mas algo deu errado na minha equação. Não fui reeleita. Pedi demissão. 



Lourença Lou


Paulo Bentancur Uma variante jogada amorosa exuberante. Do começo ao fim. Desfecho desconcertante. Genial. 

XLI


O grito do telefone entrou em mim estraçalhando minha pouca segurança. Que notícia boa chegaria às 23:45h? Fiquei paralisada permitindo que o som estridente inserisse em meu medo situações inimagináveis. Estava sozinha em casa. Nenhuma outra mão além da minha para levantar aquele fone. Nenhum abraço para me ajudar a enfrentar meus dragões e suas línguas de fogo. Uma voz nervosa perguntou por um nome. – Não é daqui – balbuciei a custo. Era engano. Não era da clínica onde ele, meu filho, estava. Nem da polícia. Nem do hospital. Nem era nenhum fantasma encomendado para me assombrar. Me joguei no sofá. Reconheci. Meus fantasmas estavam dentro de mim. Um dia eu os mataria.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Excelente miniconto escrito num tom de sugestiva e penumbrosa atmosfera. Há uma mescla de contundência e de enorme sugestão. Sim, o texto é autobiográfico, mas o brilhante ritmo narrativo é tipicamente ficcional. Magnífico, queridaLourença Lou... Beijos e boa-noite.

XL

Meus amigos tomavam cuba libre. Eu tomava coca cola. Álcool sempre foi uma intolerância inexplicável. Também não gostava de namorar. Gostava de escolher a paquera da noite. Depois de algumas horas na “discoteca”, sobrava pouca escolha. A maioria ficava bêbada e chata. Às vezes pintava discussão por qualquer coisa. Era sempre eu a separar. Quando Rui, o namorado, se achou de bater na cara de Nina, a namorada, nem pensei. Fiz o mesmo com ele. A discussão polarizou-se. Depois disso, nossa turma se dividiu. Nina nunca mais falou comigo. Rui resolveu se apaixonar pelo meu tapa.

Lourença Lou

XXXIX


Era início do novo milênio, mas parte de mim ainda estava em fins dos anos setenta. Toda vez que uma atitude política ameaçava agredir a Democracia, me arrepiava. Toda vez que escutava ou lia “Ditadura nunca mais”, me arrepiava. É que para alguns de nós, ditadura foi mais do que uma parte da História do Brasil. Foi ser arrastado da cama durante a noite, ter as unhas arrancadas, ser mergulhado nu em água gelada, ter os órgãos genitais ligados a fios elétricos e mais uma infinidade de tentativas de lobotomizar ou exterminar os inimigos da pátria. Ditadura foi as trevas bíblicas concretizadas. Era só o início de um novo milênio e eu já me arrepiava.


Lourença Lou

XXXVIII


Ter momentos de despertencimento já era natural. Era quando virava um pote de sensibilidades – tudo me atingia. Tudo o que antes era força, de repente se transformava em fragilidades. Perdia toda a vontade de ser sociável. E antes que eu virasse fera, pedia um tempo à vida. Durava pouco. As palavras rasgavam meu silêncio, o sangue voltava a pulsar em forma de escrita. O que era chatice virava alegria. Sem que eu me percebesse, estava outra vez em busca de salvação. E a vida virava poesia.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Maravilha de texto, quase um poema em prosa, misto de conficção liricizada. Continuo em Brasília, Lou! Volto no domingo. Saudade das pessoas e nenhuma do frio. Beijo!

XXXVII


Sábado, oito e trinta da manhã. O celular me acordou com aquele tom estridente que me esqueci de trocar. Tive vontade de gritar. Sempre detestei ser acordada assim. Entre a vontade de voltar a dormir e o sol brigando com o vento na cortina, me lembrei. Era aniversário da Luna, a cadela Shitsu do meu filho, companheira de seus mais difíceis momentos. Muitas vezes, única companheira em sua difícil caminhada sem as drogas. Respirei fundo. Juntei minha voz à dele e cantamos "Parabéns pra você" enquanto ela latia feliz. Os leões, deixei para matar mais tarde.

Lourença Lou

XXXVI


Sempre fui meio malévola, meio rocha. Mas mesmo as mulheres-maravilhas um dia sucumbiam. As notícias ruins vinham uma atrás da outra. Fragilidades no coração. A filha grávida sendo assaltada. O filho que de tempos em tempos me trazia dor e preocupação. E, para piorar, uma sequência de mortes inesperadas. Não quaisquer mortes. Um amigo querido. O parceiro de tantas fantasias. O amigo e mestre com quem trocara experiências nos últimos 3 anos. Fosse religiosa, feriria os joelhos ou choraria contas de rosário. Houve momentos em que  quis desistir. Mas desistir de quê? Depois de tudo que vivi, não podia me entregar sem lutar. Lutei contra as correntezas. Sabia que haveria outras e nem sempre encontraria um barco. Mas navegar era preciso – disse o poeta – e sempre acreditei nele.



Lourença Lou

XXXV

Olhamo-nos de viés. Entre nós as lágrimas guardadas, as mágoas escondidas, a vida aos pedaços. E o adeus. Olhos presos numa corrente de elos infinitos, adivinhando a falta que se esconderia em cada elo que nos restasse. Ele se virou. Rompeu-se a corrente. Silenciosamente fechou a porta e o fim desenhou-se à minha frente. Abracei-me. Garganta fechada, estômago contraído. Olhei em volta do quarto, escutando a mudez do armário, das gavetas, dos travesseiros. Iniciei uma dança lenta, meio louca, meio perdida. E um riso baixo. Depois rodopiei. Gargalhei. Mais alto. Mais rápido. Mais alto. Mais rápido. Até que nada mais havia além do eco daquele estranhamento. E o corpo caído sobre a cama. E o choro seco. E o silêncio no corpo. Até renascer com a manhã. A vida continuaria[p1] 

Paulo  Bentancur: Brilhante. Bom demais. Jogo do paradoxo. Inusitado. Gostei muito!

XXXIV


Era jovem, cheia de sonhos e nenhum dinheiro no bolso da calça jeans. Fui ser recepcionista num escritório de dois advogados – marido e mulher. Ao final da primeira semana eu já estava odiando os olhares e os leves esbarrões do patrão. Precisava trabalhar. Na segunda semana comecei a odiar minhas coxas grossas. Precisava trabalhar. Mas tudo virou susto e choro quando o patrão não se segurou: sua mão entrou entre minhas pernas e minha mão direita marcou seu rosto muito branco. Fui sumariamente demitida pela patroa. Pelo comprimento das saias que não combinavam com a seriedade do escritório.


Lourença Lou

XXXIII


Eram três da manhã e eu ainda não havia dormido. O sono deixava de existir sempre que aquele pedaço de mim se perdia. E cada vez, menos sonho. E mais ausências. E mais pesadelos. Um dia veio o som da campainha. Meu coração desmaiou pra logo em seguida acordar numa corrida desabalada. A morte era o medo que rondava as minhas madrugadas. A casa inteira correu para a porta. Era um policial. Olhei através dele. Lá estava meu menino perdido. Dentro da viatura. Com um corte na cabeça por onde a vida escorria. Olhei-o através da dor. Meu medo não era mais da morte. Era de uma vida não vivida.



Lourença Lou

XXXII


Éramos amigas. Ela, negra, pobre, linda. Eu, uma rebelde cheia de causas. Ela queria ser doutora e mudar sua história. Eu queria ser guerrilheira e mudar a história do país. Sem uma vaga na faculdade pública, ela pagava seu curso com a beleza e a disponibilidade sexual. Cada saída era um abuso. Cada abuso era lágrimas escondidas. Aguentava, queria ser doutora. Eu não concordava, mas não tinha tempo para convencê-la. Tinha minhas batalhas a vencer. Um dia foi levada para fazer aborto. Ela era negra, pobre, grávida. Nunca mais a vi.


Lourença Lou

XXXI


Era pouco mais que um garoto. Mas como eu, amava os Beatles, os Rolling Stones e não tinha medo de ser feliz. Fomos para Londres. Ele, orgulhoso, se esforçava para me mostrar a cidade que tão bem conhecera, nos mais de três anos que passara na UCL. O cenário ajudava, mas não era o que mais me atraía. Teríamos tido dias deslumbrantes ainda que fosse em Trancoso, no Pantanal ou em Santiago. Ele me seduzia, mexia terrivelmente com os meus parcos hormônios. E parecia nem perceber. Esforçava-se para me mostrar Kensington, Camdem Town e mil outras Londres que eu sempre quis conhecer. Mas eu estava mergulhada nos olhos, no cheiro, nele todo. Foram dias em que flutuei. Definitivamente, flutuei com ele. E desta vez, deixei que flutuasse sobre mim.



Lourença Lou

XXX


Comecei a trabalhar com quatorze anos. Escondida do meu avô - como se possível fosse. Vô Chico só permitia que as mulheres da família entrassem no mercado de trabalho depois de formadas. Fui ser recepcionista de uma clínica de olhos. No dia seguinte ele descobriu. Tive que negociar minha liberdade. Aceitei ser professora quando o que mais queria era ser aviadora. Nasci com asas nos meus sonhos.



Lourença Lou

XXIX


Éramos amigos, cúmplices, compadres, sócios e, inevitavelmente, meio apaixonados. Trabalhávamos bastante, mas também nos divertíamos quase sempre juntos – minha família e a dele. Nos últimos tempos, com a crise político-econômica do país e os problemas com meu filho, eu andava desanimada. Ele, ao contrário, cheio de energia. É na crise que os fortes sobrevivem – me dizia. E inventou criar uma nova empresa e me arrastar para a sociedade. Meu impulso inicial foi dizer não, mas eu me mataria antes de fugir a um desafio! E começamos um novo empreendimento. Dois meses depois ele foi internado às pressas. Um silencioso e fulminante câncer no fígado levou-o. E levou mais um pedaço de mim.



Lourença Lou

XXVIII


Eu a vi assim que entrei. Olhar perdido no fundo do salão como se nada mais existisse além da incredulidade que a paralisava. Perder mãe é um desvio de rota quase fatal. É injusto que num coração pequeno tenha que caber tanta falta. A dor dela doía em mim, mas eu sabia que ela seguiria seu caminho. Porque viver, viver seria imperiosamente necessário. E aprenderia, como eu, que amor não é dado de graça. Só amor de mãe.

Lourença Lou


Paulo Bentancur COISAS DE LOU é uma série muito séria, no sentido de um projeto profundo, de enorme consistência, tomado de vida, e vida intensíssima. Mesmo quando, neste episódio, haja a imperdoável entrada em cena da não convidada morte. Ainda mais na situação com que a narradora se depara: uma meninina que acaba de perder a mãe! A ótima leitora Gratia Cynthia, em seu elogio ao estilo de Lourença Lou, parece estar se referindo a este trecho, por exemplo: "Perder mãe é um desvio de rota quase fatal. É injusto que num coração pequeno tenha que caber tanta falta." Fosse eu continuar a citar outros trechos tão eufônicos, repetia o texto inteiro. E são apenas seis linhas! Fica para sempre, como uma sentença brutal, a constatação de que durante a vida espera essa criança o duríssimo aprendizado: "amor não é dado de graça. Só amor de mãe." Emoção inestancável na maior síntese. Beijos, querida amiga, parceira Lou, carinho, admiração.


XXVII


Perda de marido além de doloroso, é a maior quebra de rotina que existe. Tira a gente do ar. Incomoda. A gente fica entre matá-lo outra vez e chorar a seco a sua falta.  Meu marido foi sem minha permissão. Me pegou de surpresa. O mundo caiu sobre minha cabeça e tive que carregá-lo, como uma deusa Atlas moderna. Sobrou assumir toda a nossa empresa, com suas dores e suas delícias. E as compras em supermercados – de longe o que eu mais detestava!



Lourença Lou

XXVI


Todos os dias ele me olhava do mesmo jeito, sorria o mesmo sorriso, cantava a mesma cantada. Todos os dias eu lhe fazia caretas, mandava crescer, dava-lhe a mesma gargalhada. Um dia ele inovou: inventou-me musa e deitou-me em versos banais. Me senti Carolina de Chico e quase me esqueci na janela. Mas só até me lembrar: entre eu e ele muitas bandas iriam passar.

Louença Lou




XXV


Abraçando-se, sorria e balançava-se feliz. Os olhos, brilhantes jabuticabas, passeavam entre os meus e o grande embrulho colorido ao pé da árvore. Esperava meu sinal. – Vá. Pode pegar os presentes. – Lentamente se abaixou. Com um cuidado imenso, pegou o embrulho e levou-o a um canto da sala. Paramos todos para olhá-lo. Ele era todo um imenso sorriso. Entre suas perninhas surgiu um grande caminhão de bombeiros. Bateu palmas. Depois as pequenas mãos começaram as descobertas. Luzes se acenderam, sirene gritou e o caminhão saiu de dentro do seu pacote. Sorridente, abriu todos os outros presentes. Chamei-o para cear. Não quis. Sua fome, olhos, boca e sentidos estavam naqueles brinquedos coloridos que nunca tivera. Dormiu cercado por eles. No dia seguinte, minha filha o levou. Seu olhar era uma mistura de encantamento e despedida. O meu, ardência e calmaria. Era natal.


Lourença Lou

Paulo Bentancur A beleza inicial narrada no episódio XXV de COISAS DE LOU (irresistível série de uma espécie de minicontos de tom autobiográfico e atmosfera ficcional) se soma a uma delicada emoção inevitável quando o protagonista é uma criança e a natureza mágica de seus desejos (brincar) sendo atendida. Ainda mais num evento emblemático como o Natal. Mas quem escreve com essa síntese (a adensar mais ainda o impacto psicológico, o encantamento e a subsequente contundência) é Lourença Lou, com sua prosa de quem também, na poesia, vai longe e sempre impecável no ritmo e sem nunca abrir mão da brevidade. Prosa certeira e eufônica, entre a força de um lirismo que sacode o leitor. A contundência principal é o desfecho. Brinquedos na mão, o menino é levado embora no dia seguinte. Mistura êxtase e essa sutil amargura da despedida. Quanto à testemunha da narradora, que certamente o trouxe de alguma instituição para passar aquela noite, "ardência" (prenúncia do pranto) e "calmaria" - porque, humaníssima, deu-se também um belíssimo presente, realizando o mais pleno imaginário de um menino que de outra forma passaria uma noite precária, sem sonho algum, e, menos ainda, sem nenhuma realidade tomada de exuberância. Tocante demais, Lou. Tua série, para meu gosto, já é um êxito. Beijos, carinho, admiração.


XXIV


Era professor de História Antiga. Brilhante e cafajeste – aquele tipo que apaixona grande parte das mulheres. Nossa relação foi de encantamento. Durante um tempo nos completamos - ambos numa busca feroz do puro prazer. Fomos aprendizes um do outro. Desvendamos os meandros da carne e nos aventuramos em inúmeros embates do intelecto. Até descobrirmos: éramos apenas contendores a quem só interessava a vitória. E no amor era preciso aprender a perder, ainda que perder-se um no outro.

Lourença Lou


Paulo Bentancur Notícia ótima! COISAS DE LOU atinge seu XXiV capítulo, o que comprova que o (ótimo) projeto tem fôlego. A série de minicontos na forma e, na atmosfera, entre o confessionalismo e a ficção, é nada menos que uma delícia. Ágil na alta temperatura emocional - à qual o leitor se entrega totalmente - e vazada num estilo invejável, a chamada poesia da prosa. Lourença Lou, poeta que está sempre na minha lista das inadiáveis, é uma narradora de uma rara fidelidade à trama que constrói com elipses, com apurado ritmo tanto estilístico quanto psicológico. Neste capítulo específico ela acerta tão bem no tempero que o leitor levanta da cadeira. E volta a ler tudo de novo, agora em pé. Beijos de carinho e admiração, queridíssima Lou

XXIII


Ela tinha 15 anos quando me mandou um bilhete dizendo: Não preciso de uma amiga. Tenho todas que escolhi. Preciso e quero uma mãe. Não chorei porque não sabia chorar. Mas doeu profundamente. A minha geração derrubou todas as regras que até então organizavam as relações familiares porque as considerávamos conservadoras e patriarcais. Mas não estávamos conseguindo ocupar os espaços vazios.

Lourença Lou

Paulo Bentancur Bingo! Que observação vital, decisiva, bonita, um rito de passagem registrado pela poeta-mãe Lourença Lou! Beijos, querida


XXII


Na segunda vez em que nos vimos, me adotou. Virei sua vovozinha e ele, meu neto especial. Não sabia qual foi o instrumento que ele descobriu dentro de mim - eu que nunca fui muito afinada com crianças. Sei que ele me salvava a cada vez que prendia meu rosto entre suas mãos e me olhava de um jeito também especial. Era quando o tal instrumento começava a tocar. Eu virava o anjo que nunca fui.

Lourença Lou


Paulo Bentancur COISAS DE LOU XXII em 6 linhas, como tem sido o maravilhoso projeto. Tomado de síntese, amalgamado entre o miniconto e o poema em prosa, e a conficção, e uma intensa emoção que só Lourença Lou atinge em tão alto nível, alto grau de literariedade. Mas mais que literatura, encontraram-se e já na segunda vez ela se transformou, como numa fábula humaníssima, vovozinha, e ele encontrou-se, amando-a, o seu neto. A poeta não tem temperamento afinado com crianças, mas aquele menino especial a tornou - naquele instante - também mulher especial. O miraculoso toque no seu rosto dado pelo menino-anjo acendeu a alma dos dois. O menino, quase uma entidade, levada a amá-la a partir de um instrumento emocional, afetivo. O desfecho - bem ao estilo de Lourença Lou -: "É quando o tal instrumento começa a tocar e viro o anjo que nunca fui." O instrumento, no fundo, é a condição diferenciada do menino. Quanto mais a poeta nega o humaníssimo ser que é, amorosíssimo, mais o confirma. COISAS DE LOU, para meu gosto, é uma das fundamentais realizações de Lourença Lou! Carinho, admiração, encantamento. Beijos, querida.

XXI


Éramos vizinhos. Ele, aluno da pós-graduação. Eu, professora do curso de Letras. Ele queria continuar sendo o carona. Eu o ignorava. Sabia. Ele era o caminho mais curto para a loucura. Naquele dia, enlouqueci. O trânsito parava. Eu lhe falava com voz desconhecida. Ele me olhava entregue. Minha consciência estava em estado de choque. Não chegava até ela seus olhares de cordeiro imolado. Nunca soube como chegamos. Nem como aquele ano terminou. Alguns homens nasceram para serem sacrificados ao amor.

Lourença Lou



Paulo Bentancur A professora de Letras e o aluno na pós-graduação. Mas, muito mais que isso, "Eu lhe falava com voz desconhecida. Ele me olhava entregue." Embora a prosa enriquecida da série COISAS DE LOU, a poesia não se omite, e o aluno (a professora também) tomado de desejo é um "cordeiro imolado". A experiência da narradora domina a situação, embora se perca em plena consciência levada pela febre do impulso erótico. O desfecho é muito bom bom. Cadê mesmo o sexo frágil? As coisas mudaram de fato! Eis as última frase do miniconto/confissão: "Alguns homens nasceram para serem sacrificados ao amor." Verdade, algumas professoras não perdoam... Excepcional, Lourença Lou, amada, querida amiga, parceira, escritora multigêneros. Beijos de leitor zonzo.


XX


Ele era quase padre. Eu, adolescente. Ele era um desperdício de lindo. Eu  tinha os hormônios em desassossego e cara de anjinho. Ele me olhava e disparava a rezar. Eu o olhava e me doía o estômago. E as missas iam ficando pequenas para a fome do nosso olhar. Um dia o esperei na porta da casa paroquial. Parou no meio da escada. Não sabia se voltava ou me enfrentava. Enfrentou. E me viciou em amores proibidos.

Lourença Lou

Paulo Bentancur A série COISAS DE LOU, capítulo XX, sustenta a delícia da tensão amorosa em que a literatura de Lourença Lou traz uma intensíssima marca. A adolescente e o rapaz que se prepara para padre. Mas Deus ou não olha essas coisas ou as bendiz mais do que supúnhamos. A trama, admiravelmente breve, como num miniconto, embora de natureza autobiográfica, traz a temperatura alta do que é essencialmente ficcional (porque sugestivo). O que dá relevo literário ao texto, além da situação (emocionalmente com a força do frisson), é a linguagem, adequadíssima à situação. Temperatura alta, quase irrespirável. E frases de uma eufonia de mestre, ritmo de quem domina a prosa com pulso firme. E aquele desfecho, com a acertada expressão "me viciou em amores proibidos". Uma série já consagrada para quem a acompanha deste o início. Eu adoro! Encontro aqui o acerto pleno da boa literatura e o prazer da leitura que nos acelera o coração. Marca consagrada da série, que manténs sem oscilação. Em suma: irresistível a leitura de COISAS DE LU, não importa o enredo, doloroso ou saboroso, sempre nos levando juntos, nos pondo nesse real que recuperas com palavras luminosas. Beijos de admiração e carinho,Lourença Lou, minha amada, amiga, parceira, escritora de tantos gêneros, um mais bem realizado que o outro

XIX


Estava separada, carente e quase cruel. Dia sim, outro também, fomes gritavam em meu corpo e incendiavam minhas ambiguidades. Uma louca vontade de virar 'Donna das Camélias' amassava meus lençóis. Um medo incompreensível de morrer de inanição apavorava meu sono. Uma noite descobri: há tempos não comia um homem de fibra.

Lourença Lou


Paulo Bentancur COISAS DE LOU é um projeto literário dos mais interessantes. Ali a poeta consagrada descansa enquanto Lourença Lou - incansável - tece agora num novo gênero, a prosa. Mas, incorrigível poeta, com o lirismo amadureceu seu ritmo, seu fraseado. De tal modo que as breves histórias desta série deliciosa se impõem pela verdade humana que marca a personalidade da escritora, mas também pelo fluência de uma dicção que ela não perde nem quando narra. Aqui é bem um exemplo: em cinco linhas (cinco linhas, meu deus!), um miniconto pronto, e com desfecho do melhor humor - embora o fundo de natureza erótica. Não por outra razão, chamo, há mais de um ano, Lourença Lou de escritora-plural. Ela pulou a fronteira dos gêneros e, mais que experimentá-los, realiza com excelência cada um deles. Beijos, queridíssima amiga, parceira e tanto, admiradaLou.falando. A crônica, aliás, é o gênero da convivência. A foto confirma tudo isso. Bonito demais, queridíssima Lou!

L

Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos ...