quinta-feira, 27 de setembro de 2018

XVIII


Acabara de sair de uma comunidade hippie pra onde fui em protesto à minha não-vida familiar. Foi um tempo de absoluta calmaria. Tanta que algo em mim explodiu e me jogou de volta à vida. O movimento estudantil estava em plena efervescência. Descobri. Era ali que a minha rebeldia deveria se manifestar. Voltei ao Colégio Estadual, direto pro DE. Dos tempos de paz e amor, ficou a mania de nadar nua em cachoeiras desertas.

Lourença Lou



Paulo Bentancur Que retrato denso e admiravelmente humano nos dás, ao mesmo tempo, com essa fluência invejável na linguagem, que tão bem dominas. O texto, tão breve, diz tanto A foto, interessantíssima. Uma época inteira emerge de tão poucas linhas, um imaginário radical e fascinante. Tu abusas, Lourença Lou! Cuidado, talento tem limites. (Parece que não é o teu caso.) Beijos.

XVII


Ela era alta, loira e linda. E estava literalmente dependurada no pescoço do meu marido. Alguma coisa se mexeu dentro de mim. Não eram ciúmes – eu me dizia. Estávamos a um milímetro de mais uma separação, por que a cena iria me incomodar? Surpreendentemente – ou nem tanto –, incomodou. E muito. Uma vontade de ter garras crescia nas pontas dos meus dedos. Antes que meu sangue de guerreiros africanos se manifestasse, me virei para sair do salão. Talvez a raiva fosse maior do que eu imaginava. Ou talvez o defeito estivesse no chão. O salto agulha virou, o pé gritou e meu corpo perdeu a gravidade. Por segundos me vi no último degrau – se não morta, fingindo estar. Fui salva por um abraço que grudou minhas costas num peito largo. Um perfume bom e conhecido foi lá no fundo buscar lágrimas que disfarcei. Nunca entendi como ele conseguiu se livrar da serpente a tempo de me salvar.

Lourença Lou



Paulo Bentancur Definitivamente a série "Coisas de Lou", em seu capítulo XXI, é uma afirmação. E cada vez se revelando com alto grau de literariedade, como é a trama que agora a poeta-surpresa e a escritora-plural nos oferece e à nossa emoção. O que seria nas mãos de uma maciça maioria uma banal cena de ciúmes, na linguagem limpa, eufônica e ao mesmo tempo rica em sugestão de Lourença Lou resulta numa história que nos impacta, comove, e alivia no desfecho. Embora a natureza autobiográfica (que costuma eliminar a tensão literária), Lou alcança em regra um efeito de força emocional. O leitor - quanto melhor ele for - não resiste. Eu não resisti. Beijos, querida talentosa.

XVI


Acabara de me formar. Das turmas que me deram, duas eram as mais problemáticas da escola. Quis acabar ali a carreira. Resisti. Tinha ainda marcas de uma vida onde não cabia covardias. Não seria o magistério que me derrubaria. Em algumas semanas eu já era admirada por alguns colegas e olhada de lado por outros. Ignorei. E me concentrei no que mais interessava: conquistar o respeito dos alunos, apesar de ser mais nova que a maioria deles. Não foi fácil. Escondi um manancial de lágrimas, quase arranquei os cabelos e ignorei vários bilhetinhos atrevidos. Ao final do ano estava feliz. Fui homenageada pela turma mais difícil e virei o sonho erótico de quase todos os meninos. Só não consegui comprar o perfume importado que tanto queria. Descobri: esta era “a dor e a delícia” de ser  educadora!


Lourença Lou



Paulo Bentancur Brilhante miniconto da vida escolar de Lourença Lou! Não bastasse a trajetória nesse território sedutor e de disputas, tanto na fase no aluno quanto na da professora (essa "entidade"), a prosa porosa, admirável da escritora faz do gênero um gênero maior. Bravíssimo! E beijos, querida.

XV


Ele morava em São Conrado, eu em Santa Tereza. Ele era um playboyzinho da classe média alta. Eu, uma bolsista Universidade. Ele surfista, solteiro e cheio de garotas de praia ao seu redor. Eu estava no início de um casamento que sofria de solidões plantadas entre Rio, BH e Porto Trombetas. Não tínhamos nada em comum, só aquela coisa maluca que nos dava por dentro e nos arrastava um para o outro – apesar da imensidão do campus, apesar da imensidão das diferenças. Ele insistia. Eu resistia. Ele era tudo o que eu combatia. Um dia me surpreendeu: trouxe seu sorriso de leãozinho, aquele corpo de sol e duas passagens para o amor. Não resisti. Nunca tinha entrado num avião.

Lourença Lou



Paulo Bentancur COISAS DE LOU já está no XV minicapítulo. Para o meu gosto, um dos melhores. Disparado. A frase final, genial, Lourença Lou. Parabéns e um beijo de uma grande admiração.

XIV


Antes dos quarenta anos, fui eleita presidente de uma cooperativa educacional. Começaram meus doces problemas e as transformações na minha vida. Parece besteira, mas trocar o patchouli, sandálias de couro e roupas indianas de riponga por saltos, elegantíssimas saias justas (indiscretíssimas ao me sentar) e ares de executiva fizeram muita diferença. Além disso, entre as funções inerentes à direção de uma escola, havia a necessidade de marketing: vendíamos uma ideia nova, uma nova concepção de educação. Eram viagens, palestras, entrevistas televisivas, consultoria no Sebrae e o que mais aparecesse. Vinte e quatro horas eram insuficientes para o meu dia. Marido e filhos eram sombras em minha vida. Meu ego seguia mudando o foco das minhas prioridades e eu adorando os holofotes. Foi quando sofri o golpe mais forte e mais profundo entre tantos outros que já havia vivido.

Lourença Lou



Paulo Bentancur E depois dizes que não és boa com finais! ÉS ÓTIMA! O desta crônica é demais, o coração da gente dá pulos. Vívido e emocionante,Lourença Lou, escritora plural querida. Beijos!

L

Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos ...