Éramos quatro e crescíamos sem mãe e sem pai. Ela havia morrido.
Ele, cada dia mais ausente. Não entendíamos a vida que tínhamos. Ele tentou nos
explicar. Disse que precisava defender nosso direito de ter um futuro.
Continuávamos não entendendo. Todas as noites ele saía e chegava tarde. Um dia
não voltou. Tempos depois apareceu. Tinha o olhar raivoso e as mãos machucadas.
Algumas unhas lhe faltavam deixando os dedos com estranhas pontas vermelhas. A
casa ganhou uma vida diferente. Não podíamos brincar, não podíamos correr, não
podíamos perguntar, não podíamos quase nada. Uma noite a porta da casa foi
arrombada. O som parecia a explosão de uma bomba em nossas cabeças. Homens
enormes de botas pretas o levaram. Nunca mais voltou. Voltou seu corpo.
Lourença Lou
Paulo Bentancur A pesada sombra dos
Anos de Chumbo ainda escurece nossas almas, nossa (des) esperança. COISAS DE
LOU traz à tona o golpe militar que em 2014 completou 50 anos. Nunca, nenhum de
nós, nem de nossas famílias nem de nosso amigos se recuperaram. Aconteceu tudo
de ruim. Torturas para com elas convivermos durante a vida inteira.
Assassinados a que apelidaram de "desaparecidos", e uma total falta
de liberdade para pensar e manifestar o pensamento, que dirá criar no âmbito da
arte. Escritores tiveram que reinventar um outro tipo de literatura,
comprometida demais ao ponto de ser menos arte. Eis o contexto. E é nele que as
famílias foram reféns como a jovem narradora conta aqui. E conta com uma emoção
das mais fortes - a contida -, prisioneira de um luto de décadas. A começar,
pela perda da força que lhe restara, o pai. Lourença Lou está realizando na
série COISAS DE LOU seu projeto maior, segundo meu gosto pessoal e o de muitos.
Uma prosa breve e certeira. A vida recuperada tal como se deu, mesmo quando
profundamente agredida. Uma conficção de alto grau de literatura. Meu beijo de
carinho e admiração