sexta-feira, 28 de setembro de 2018

XLVI


Éramos quatro e crescíamos sem mãe e sem pai. Ela havia morrido. Ele, cada dia mais ausente. Não entendíamos a vida que tínhamos. Ele tentou nos explicar. Disse que precisava defender nosso direito de ter um futuro. Continuávamos não entendendo. Todas as noites ele saía e chegava tarde. Um dia não voltou. Tempos depois apareceu. Tinha o olhar raivoso e as mãos machucadas. Algumas unhas lhe faltavam deixando os dedos com estranhas pontas vermelhas. A casa ganhou uma vida diferente. Não podíamos brincar, não podíamos correr, não podíamos perguntar, não podíamos quase nada. Uma noite a porta da casa foi arrombada. O som parecia a explosão de uma bomba em nossas cabeças. Homens enormes de botas pretas o levaram. Nunca mais voltou. Voltou seu corpo.

Lourença Lou

Paulo Bentancur A pesada sombra dos Anos de Chumbo ainda escurece nossas almas, nossa (des) esperança. COISAS DE LOU traz à tona o golpe militar que em 2014 completou 50 anos. Nunca, nenhum de nós, nem de nossas famílias nem de nosso amigos se recuperaram. Aconteceu tudo de ruim. Torturas para com elas convivermos durante a vida inteira. Assassinados a que apelidaram de "desaparecidos", e uma total falta de liberdade para pensar e manifestar o pensamento, que dirá criar no âmbito da arte. Escritores tiveram que reinventar um outro tipo de literatura, comprometida demais ao ponto de ser menos arte. Eis o contexto. E é nele que as famílias foram reféns como a jovem narradora conta aqui. E conta com uma emoção das mais fortes - a contida -, prisioneira de um luto de décadas. A começar, pela perda da força que lhe restara, o pai. Lourença Lou está realizando na série COISAS DE LOU seu projeto maior, segundo meu gosto pessoal e o de muitos. Uma prosa breve e certeira. A vida recuperada tal como se deu, mesmo quando profundamente agredida. Uma conficção de alto grau de literatura. Meu beijo de carinho e admiração

L

Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos ...