sábado, 29 de setembro de 2018

LX

Final de segunda-feira. A chuva pesada ensopava nossas roupas e cadernos. Os granizos batiam em nossos casacos e nos ensurdeciam para o resto do mundo. A enxurrada era um rio onde brincávamos de equilibristas.
Passamos pelas mesmas vitrines da Afonso Pena, mas naquele dia não conseguimos namorar os chocolates embrulhados em papel dourado. Sabíamos que eles estavam lá. Um dos meninos gritou:
- Se a gente jogar uma pedra na vitrine quem vai descobrir que não foi a chuva?
Abaixamos. Nossas mãos, nadando cegas na água cor de carne, se fecharam em variados tamanhos de pedras. Jogamos. Uma acertou.
Na delegacia, todos éramos culpados. Admitimos de barriga cheia e sorriso nos olhos - apesar dos castigos que nos esperavam em casa.
No dia seguinte ainda não havíamos nos arrependido. De que outra forma nos empanturraríamos de chocolates da Kopenhagen?





LVII


Estava apaixonada por um disc-jockey da Rádio Tiradentes e achava que ele também estava por mim. Era alto, loiro e lindo. Fazia um programa jovem, para gente jovem. Todos os dias eu escrevia um texto que concorreria à escolha dele. E assim começou minha mania de me achar cronista. Amava escrever sobre coisas da adolescência, sobre livros, sobre rock’n roll e sobre minhas monumentais paixonites. Tudo recheado da minha indignação pelo regime que havia me tirado o pai. E ia pra porta da rádio, me juntar a um bando de outras adolescentes, para vê-lo chegar. Depois do habitual histerismo, ficávamos ali até ele entrar no ar e anunciar a crônica escolhida. Quase sempre era a minha e ele lia naquela voz que revolucionava  profundamente os meus hormônios. Elas saíam emburradas. Eu, cada vez mais sozinha. Não sabia lidar com meninas. Meninos eram meu desafio.

LVIII


Val gostava de vinho. Às vezes, até demais. Ela e Júnior tinham o hábito de tomar vinho às sextas, escutando uma boa música. Vez em quando convidavam amigos. Quase sempre eram os dois. E quase sempre o marido a levava para a cama. No dia seguinte, além da dor de cabeça só existiam névoas. Nos últimos tempos acordava com dores no corpo. Disse ao marido. - Deve ter dormido de mau jeito. - ele respondeu tranquilo. Os sábados passaram a ser doloridos. Todos eles. Ela começou a achar muito estranho. Já se acostumara a acordar com sêmen seco nos seios ou entre as pernas. Achava meio nojento, mas era próprio de homem essa coisa de não se segurar. Acordar com dor era diferente. Em um sábado, acordou também com uma dor terrível no ânus. Num clique, a verdade saltou. Seu marido a estava estuprando nas noites de sexta. Sexo não consensual era estupro - ela vivia dizendo às mulheres a quem atendia em seu consultório. Foi como um soco no estômago. Imediatamente tudo que sentia virou raiva. Quando ele chegou do futebol, comunicou: 
- Pegue suas malas e suma! 
Ele a olhou sem nada entender. Tentou beijá-la como sempre. Ela se esquivou. Em poucas palavras, disse a ele sobre suas descobertas e repetiu a decisão. Ele tentou discutir, justificar. 
- Ou você sai ou saio direto para a delegacia. 
Júnior estava embasbacado. Não entendia a radicalidade da mulher. Não fizera nada além do que faria qualquer marido. Val estava irredutível: 
- Até podemos conversar, mas não hoje, não agora. Estou me segurando para não te denunciar. Não quero te encontrar quando voltar. 
Pegou as chaves do carro e deu-lhe as costas.   

LIX

Era uma festa barulhenta, cheia de gente bonita e mil perfumes dançando no ar. Eu, enfastiada. De cheiros e de indolências. Estava em TPM emocional. No dia seguinte jorraria meu sangue na busca de uma assinatura. Selaria o destino do meu futuro profissional.Ele chegou desajeitado. Quase pedindo desculpas por existir. Olhei-o sem vontade. Descartei-o sem perdão.  E continuei ausente de tudo e de todos. Insistente, ele se fez presença. Com voz gaguejante fez uma pergunta. Não ouvi. Não quis. Mesmo sem querer, senti sua solidão.  Olhei de novo. Sua palidez me atingiu. Algo em mim se constrangeu. Cedi. Descobri, ele era viúvo. Carregava o fardo de um passado interrompido. Era um ex-amante que acreditara na eternidade. E agora estava buscando na sorte a sua atualização.  Olhei-o com vontade de gritar. Depois de um longo treinamento para amordaçar as emoções, estava eu ali quase oferecendo colo a um desconhecido. Saí sem me despedir. E nunca mais o esqueci. 


Lourença Lou









 Paulo Bentancur:Extremamente bem escrito. Genial! Lembra a psicologia de Proust. Não sabemos que ela tentou algo com ele, teve algo com ele ou não teve nada e desistiu antes de voltar atrás. O certo é que o poder de sugestão é fortíssimo. E esse “E nunca mais o esqueci” é fortíssimo.  PROJETO EXCELENTE E A LINGUAGEM ESTÁ EXUBERANTE. Obra-prima.

LVI


Os quase 2.000 km que me separavam do RS eram ansiedade. Depois de dois anos eu o conheceria. Quando o vi no aeroporto não acreditei. Sabia que nunca deveria esperar muito de perfis na internet. E não esperava mesmo. Fiquei paralisada como uma idiota sem ação. Ele não era ele. Enquanto se aproximava com um largo sorriso, pensei rapidamente. E enquanto eu pensava ele tomou a iniciativa. Beijou-me com força. Na boca. Agarrei-me em seu casaco. Pernas, parecia que nem tinha. Aos poucos me soltei do seu abraço e fui me recuperando. Que homem era aquele? O fogo dele quase derreteu minhas intenções. Eu só queria duas ou três noites e a Feira do Livro de Porto Alegre. Naquela mesma noite descobri. Ele queria muito mais. Queria uma eternidade que jamais existiria. 


Lourença Lou



Paulo Bentancur: Genial, desconcertante. Dois tipos de sonho, o da arte e o da sedução. O primeiro tem êxito, o segundo frustrado. 

LV


Sempre fui feminista. Participei de vários movimentos, obras sociais e o que aparecia em defesa da mulher. E brigava feio por qualquer sombra de discriminação, ainda que em brincadeiras, que meu marido e seus amigos fizessem. Meu discurso vivia na ponta da língua. Até conhecer Iolanda. Casada com um grande amigo, ela era a “Amélia” de Mário Lago. Fiquei chocada. Não entendia como ele, grande admirador das minhas lutas sociais, podia ser tão machista. Várias vezes falamos sobre isso, em todas as vezes ele me dizia que ela era, por opção, uma dona de casa e gostava de ser tratada assim – apesar de sua graduação em arquitetura. Chauvinista – era o que eu sempre pensava. Um dia eles nos convidaram para um fim de semana no sítio. Depois de dois dias naquele paraíso rural, entendi o que Rogério me dizia. Iolanda me colocou frente a um espelho, na maior classe. Descobri meu preconceito às avessas. Saí de lá com uma certeza: ela era muito mais dona de seu espaço do que eu jamais seria.



Lourença Lou

LIV


Trancoso foi escolha da maioria. Vínhamos de Airuoca, sul de Minas, onde congelamos por algum tempo. Sonhávamos com o mar e o clima quente do nordeste. Há muito queríamos conhecer mais este paraíso perdido. Juntamos as tralhas e fomos para a estrada. Enfrentamos um sem-número de dificuldades: caronas em caminhões, balsas, canoas, longas e penosas caminhadas a pé. Mas tínhamos em média 16 anos, sandálias de couro, flores nos cabelos, estrelas nos olhos e nosso lema era paz e amor. Não chegamos em Trancoso. Zé Roberto, um dos dois meninos do grupo, envolveu-se numa discussão para defender uma das meninas. O caminhoneiro que nos deu carona confundiu amor livre com estupro. Zé Roberto não era um lutador. Nós não sabíamos o que fazer ao ver sua cabeça sangrar. Corremos para rodeá-lo. Os olhos dele estavam abertos, mas ele já não nos via.


Lourença Lou

LIII


Foi numa fila do mercado. Minha vaidade, depois das várias cicatrizes deixadas pelo acidente, me atormentava, enquanto eu fingia ignorá-la. Atrapalhada como sempre, quase caí sobre um homem. Tentei algumas desculpas, mas ele sequer me olhou. Olhou meus pés como se fossem únicos no mundo.  E sutilmente os elogiou. Olhei-o surpresa. E surpresa, me deixei ser envolvida. Eu não só precisava como merecia ser paparicada – meu id me garantia. Papo vai, papo vem, descobri nas entrelinhas seu amor por pés. Viramos amigos. Depois, amigos bem íntimos. Foi um tempo em que me diverti inventando desejos quase impossíveis. E descobri o poder dos meus pés.



Lourença Lou

LII


Flertávamos. Se não era abertamente, também não era de todo escondido. Não fazíamos por mal. Ninguém faz. Era a luta irreverente dos hormônios de adultos, supostamente resolvidos, que voltavam com a força da adolescência. Nas rodas de amigos, na fazenda, em reuniões de família, na pista de corrida – as brincadeiras levavam pimenta. O tempero ia ficando cada vez mais picante. Um abraço displicente aqui, um brincar faminto de lábios ali. E dali para a loucura, sabíamos, seriam dois passos. Mas também sabíamos. Havíamos perdido o tempo da escolha. Nossos filhos eram como irmãos. Nossos companheiros não eram apenas como. Desistimos do desejo. Sobreviveu o amor. Porque amor não vivido se inscreve no eterno.



Lourença Lou

L

Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos ...