quarta-feira, 26 de setembro de 2018

XIII


A primeira paixão ninguém esquece. Dizem. Não me lembro exatamente dele. Lembro que sofri. Ele não estava nem aí pra mim. Chorei umas 24 horas. Até que, assim sem mais nem menos, mudei o olhar. Havia vários outros me olhando. A dor que era tão profunda foi substituída por um calor que prenunciava tempestade. E foi assim: sempre como se fosse a primeira vez. A paixão atual era a mais arrasadora. E todas eram estrondosas e terminavam sempre do mesmo jeito: vazias. Um dia veio um sentimento novo. Não chegou arrasando, nem queimando, nem trazendo tempestades. Chegou tão silencioso que demorei a dar-lhe nome. Não fazia doer o coração, nem cantar as pedras como os poetas me diziam. Mas aguentou chuvas, sol a pino, naufrágios e todas as contradições. E durou – até que a morte nos separou.



Lourença Lou



Paulo Bentancur COISAS DE LOU -  vem com tudo parecendo vir com pouco. É o estilo elegante, limpo, ritmado mesmo na prosa da poeta de tantos recursos e da escritora multigêneroLourença Lou. Já na 3a frase deparamo-nos com um efeito da força de um achado, irônico, e, como constatação, verdadeiro. Na 6a frase são inevitáveis as risadas gerais. E não é de humor que se trata, mas tal talento sobra nessa escritora que nunca economiza efeitos. Prosa sim, mas há poesia (metaforização): "A dor que era tão profunda foi substituída por um calor que prenunciava tempestade". Entre a 4a e 6a linhas, parte delas revela sob medida a condição humana no plano amoroso. A narração, quando se aproxima do fim, vai ficando lenta, melhorando ainda mais a condução narrativa e o ritmo, e a deixar o leitor completamente despreparado para o desfecho. Quando chega o final da trama de tantos amores que se pareceram definitivos e definitivamente desapareceram, chega um que não parece grande coisa. E é exatamente o que permanece. O texto vai na contramão das clássicas histórias de amor contadas e consagradas. Dentro da série COISAS DE LOU, este tem um alto grau de literariedade (até porque os outros nem buscam isso). Estupendo! Beijos, querida Lou!

XII


– Puxa, como você é dura! 
– Sou.
– E diz isso assim? 
– Melhor que ficar me justificando.
– Mas você sabe o quanto te gosto. 
– Vamos acabar com isto? Você não gosta de mim. Gosta da minha admiração. Gosta que eu te goste. Eu e o mundo.
Algum tempo depois nos reencontramos. Estava com cara de menino faminto e os lábios cor de sangue. Não precisei perguntar. Continuava o mesmo vampiro de sempre. Que vergonha olhá-lo e lembrar que o amei. Que alívio sentir vergonha e nada mais.


Lourença Lou



Paulo Bentancur Fantástico episódio da série contundente, irresistível, COISAS DE LOU, já em seu episódio XIX. A protagonista, em todas as situações, por mais incômodas, delicadas, abusivas, sabe se defender com um poder de decisão, uma força movida a dignidade, que não é mole encontrar nem no varejo nem no atacado. Não bastasse a situação de rompimento que ela toma com um coração maduro e uma inteligência ligadíssima, tem a agilidade da prosa de Lourença Lou, uma das mais bem escritas que tenho lido ultimamente (tanta síntese com tanta situação costurada). Um dos grandes projetos literários - ainda que corajosamente autobiográficos - que tenho lido nos últimos dois, três anos. Um esforço enorme, para quem faz o comentário, não enchê-lo de adjetivos qualificativos. A série parece melhorar mais e mais a cada dia. Beijos de carinho e admiração, Lou. E um bom começo de semana.

XI


O vale de Matutu, em Aiuruoca, era daqueles lugares de paisagem sempre bela e o clima havia parado nos anos 70. Foi este clima que me recebeu, trinta anos depois. O poderoso cheiro de cannabis inundava os ares como um abraço saudosista. Ignorei-o. E fingi ignorar também a lei da gravidade que mudou meu corpo, tantas vezes coberto apenas com aquelas espumas. Mergulhei. Como se rebatizada pelas águas claras, perdi o fôlego, me debati e emergi com os cabelos grudados no rosto e incenso na memória. – Porque uma pessoa precisa reencontrar seu passado de vez em quando – me justifiquei. As lembranças foram vindo e insistindo em inundar meus olhos. Eu só queria exorcizá-las.

Lourença Lou




Paulo Bentancur A ótima série COISAS DE LOU, deliciosamente autobiográfica sem perder um charme e uma atmosfera de ficção, é um dos grandes projetos já realizados pela multigêneros (até há pouco tempo eu a chamava de poeta plural)Lourença Lou. Visitando, muito tempo depois, uma região onde esteve nos anos 1970 e experimentou a liberdade da época (longe dali a sombra de tantas ditaduras), Lou, com uma prosa impecável traz à tona de tal forma o que foi passado que, narrado desta forma, nem passado parece ser agora. Mas é! Há uma busca de purificação desse tempo, de suas ações, aventuras, riscos, prazeres. E o texto - como todo bom texto - não responde, apenas sugere que o reencontro está se dando para que a liberdade daquilo tudo mostre que os tempos são outros, mas a autora, múltipla e rica em sua condição humana, continua com tantas coisas vivas - até mesmo as que não vive mais. Excelente texto de rememoração. Não tem como não emocionar. E com força! Bom-dia e beijos, querida e talentosa poeta, contista, cronista etc...

X

Sempre fui uma caçadora. Sempre busquei o que queria, independente de ser politicamente correta ou não. Às vezes queria ser como as minhas colegas. Ser arrebatada por braços sedentos do meu corpo e adormecer com aquele sorriso de alice no país das maravilhas. Não conseguia. Minhas fibras eram por demais retesadas para qualquer tipo de entrega. Minhas entregas eram oficiosas, nunca oficiais. Um dia meu mundo anoiteceu. Após a extrema e malquerida experiência de ter a morte flertando comigo, me vi líquida. Líquida de gratidão pela vida. Líquida de amor a mim mesma. Líquida de desejos novos e urgentes. Foi assim que aqueles braços, antigos e quase ignorados, me reencontraram. Não foi preciso que ele escalasse nenhuma montanha para colher os meus desejos. Nem ser fogueira para arder em minha pele. Eu estava pura entrega. E foi doce escorrer em sua boca. E foi divino renascer menina embrulhada no seu carinho. Não foi eterno. Mas a caçadora aprendeu também a ser caça. E gostou. 

Lourença Lou




Paulo Bentancur Texto equilibradíssimo, condução da narrativa sob medida. Onde parece pieguice (alice no país da maravilhas e “E foi divino renascer menina embrulhada no seu carinho”), perpassa um humor e uma provocação do tema proposto. O que torna a confissão mais coerente e com atmosfera mais adequada, quase desafiadora. Esta série entre o confessional porém despido de quase qualquer peso, beira o miniconto. A atmosfera lança o tempo todo um humor enviesado. E o desfecho, bem mais leve, deixa o texto - agradabilíssimo de ler - como mais um dos tantos capítulos impecáveis do projeto. Eis o mais fundamental: o projeto e a linguagem. Eu ia acrescentar a forma, a estrutura, mas estaLourença Lou domina de tal forma que seria redundância da minha parte. Em suma, uma delícia. Pimenta doce. Beijos, poeta da prosa.

IX


Todas as tardes as crianças brincavam na rua. Era rouba-bandeira, pique-esconde, queimada e o que mais inventassem. Eu ficava olhando de uma das muitas janelas do casarão da minha avó. Nunca me chamavam. Perguntava à minha avó a razão. Ela não respondia. Sempre me dava algum livro pra ler. Um dia, desci a escadaria e pedi pra brincar. – Não. Seu avô é preto. – E o que tem isso? Uma delas me respondeu: – Meu pai proibiu. Disse que preto quando não suja na entrada, suja na saída. Naquele dia percebi que minha avó era branca e meu avô era negro. E que fora da minha casa, negros eram tratados diferente de brancos. 

Lourença Lou


Paulo Bentancur Me fizeste chorar, sobretudo pela frase de desfecho. Miniconto por demais comovente. Humanidade FDP! Tua lírica, mesmo em prosa, deixa a gente zonzo. Beijo, poeta querida Lourença Lou!

VIII


Os últimos anos não haviam sido fáceis. Toda vontade de ser sociável se evaporara. Eu era uma fera solitária, rebelde e pronta para atacar. Mas já acabara o tempo das rosas e dos fusis. Meus heróis já não existiam, estava grávida e não queria me casar. A gravidez terminou aos dois meses em meio a um lago de sangue e meu olhar entre apavorado e aliviado. Foi quando conheci a mãe dele. Eu sempre quis ter uma mãe. Me casei com ela muito antes de acordar para a realidade: vinha junto um companheiro de todos os dias. E ele foi tão maravilhoso que me ensinou a sonhar. E levou a vida a me adotar.

Lourença Lou



Paulo Bentancur Maravilha de texto, quase um poema em prosa, misto de conficção liricizada. Continuo em Brasília, Lou! Volto no domingo. Saudade das pessoas e nenhuma do frio. Beijo!

VII


não presto
nunca prestei para ser em série”
Sempre quis escrever um poema que começasse assim. Esta foi a minha realidade desde os doze anos quando tive que inventar caminhos para mim e para meus irmãos. Foi quando descobri que ser em série era mais cômodo, mas infinitamente menos interessante. Desde então, sou chocolate com pimenta. Destes que são adorados até que sejam provados. Porque é preciso amar para suportar o ardor.

Lourença Lou



Paulo Bentancur A série impagável, deliciosa (mesmo com pimenta perturbando o chocolate), COISAS DE LOU, chega no XII minicapítulo, num tom inovador, desconcertante, tecido numa prosa não só fluente, mas sintética e, por isso, contundente, sempre com uma surpresa na manga. Neste episódio, Lourença Lou expõe sua singularidade a partir de um poema escrito em seus verdejantes anos (baseado na realidade desafiadora dos doze). A poeta, além do talento artístico indomável - daí poeta-surpresa, poeta-plural -, é uma presença humana admirável pela personalidade única, que não negocia, que não abre mão de sua trajetória, e nem por isso busca agredir seu público, seus amigos, com a obra e a performance que cria diariamente dotados de uma intensidade daquelas de fazerem o leitor/parceiro/amigo tropeçar. Lourença Lou será a primeira a estender a mão para ajudar a lenvantá-los. Não faz por mal. Sua coragem e desafio aos limites da expressão filosófica da vida, seu jogo perigoso em meio à realidade dos costumes - tudo isso é a alma de Lourença Lou, que se atordoa, encanta com a mesma força. Muda-nos o olhar o nosso próprio mundo. Criadora honesta e dotada de uma força inesperada. Até os sustos que provoca recebem de quem a lê a comoção afetuosa da necessidade de um cumprimento da mais plena admiração, de um abraço e um beijo daquele que, a partir de suas criações, não disfarça a profunda sedução estética, o coração batendo a mil não se omitindo a dar seu comentário diante de tanta beleza e verdade humanas. Eu reconheço emLou uma artista praticante da multiplicidade - e da vida mais reveladora. Beijos, querida

VI

Quando o conheci, era o mais antipático aluno da engenharia. E politicamente alienado. Achava que odiava seus olhares em mim. Meu preconceito político pedia que eu o alvejasse. Eu mal conseguia ignorá-lo. E morria de raiva dos arrepios que me causava. Fugi da sua influência. Virei primeira-dama revolucionária. Sofri, gozei, perdi, ganhei, sorri, odiei. Muito tempo depois, o reencontrei. Durante anos, foi meu melhor parceiro sexual. Talvez por saber o jeito certo de quebrar as minhas certezas.


Lourença Lou



Paulo Bentancur Uma aula de narrativa, de condução da trama, de criação dos protagonistas, e, sobretudo, do desfecho. Demais queridaLourença Lou! Beijos.



V


Todos os dias ela estava ali, na saída do campus - cabelos longos encaracolados, shorts ou saias daquele tamanho indecentemente lindo, óculos quase sensuais. Todos os dias eu me perguntava por que não lhe dava carona. Ela fazia aflorar a minha crueldade. Meu irmão, meu namorado, meus amigos viviam olhando-a daquele jeito guloso e ela com aquela cara de alienada. Decididamente eu não gostava dela. Resolvi esquecer que ela morava no prédio ao lado. Nem sofri.


Lourença Lou






Paulo Bentancur Raro é um miniconto como este. Explora com "branda" linguagem e estilo "o lado cruel de todos nós". Bem, se a mulher que falas era parecida com a da imagem, risos, eu afirmaria que não tenho lado cruel. Mas te compreendo poeta. É uma rival das mais demolidoras. Lourença Lou, querida, andas arrasando nos minicontos, inclusive mudando a forma de estruturá-los. Falo de COISAS DE LOU, já vai pensando num outro livro do gênero. Apenas desfaz o sentido autobiográfico (ou talvez não). O importante é que claramente a série mostra a sua cara, a sua bela carinha. Carinho,Lou. Beijos

IV


Aos quarenta e poucos anos, tudo em uma mulher é exuberante - das formas à sensualidade madura de quem sabe o que quer, como quer, quando quer. Nele, a sexualidade era aberta e agressiva. E os anos eram menos de trinta. Tinha uma Harley Davidson com a qual só minha maturidade conseguia competir. Busquei exaustivamente um ponto de convergência. Em vão. A cama era nossa única tábua de salvação. Passei a procurar o ponto de ruptura. Achei quando caí da moto e quebrei o pé. Descobri a fisioterapia. E um fisioterapeuta.

Lourença Lou


Paulo Bentancur Fluência verbal das mais plenas, imagens muito bem descritas, erotismo e, incrível!, junto o humor, no desfecho. Miniconto (este pertence a tal gênero) denso de cenas e emoções com a síntese exemplar de Lourença Lou. Irresistível, querida! Beijo.

III


Podia escolher qualquer dos meus colegas altos, bonitos e inteligentes. Estava longe de ser a mais bonita da turma, mas sem dúvida era das mais interessantes. Lia Dostoiévski, Realidade, Clarice, O Pasquim e me orgulhava disso. E o escolhi. Ele era o professor de matemática – a matéria que eu mais detestava. Foi escolha de paixão. E foi lindo tê-lo e me dar a ele. Mas durou o tempo daquele primeiro ano do científico. Antes de começarem as férias eu já estava com outros interesses. Queria alguém que topasse andar de mãos dadas na escola, apostar corrida de bicicleta na Praça da Liberdade e radicalizar de skate no Parque Municipal. A menina estava só ensaiando ser mulher.


Lourença Lou



Paulo Bentancur  Impressiona a forma descolada como Lourença Lou narra seu crescimento, sua adolescência - a menina virando mulher. E o texto igualmente bonito. Beijo, querida.

II



I






L

Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos ...