sexta-feira, 5 de outubro de 2018

LXIX


Elas chegaram e se sentaram na poltrona ao lado da minha, na sala de espera do consultório. A mais alta, de enormes e desnecessários óculos escuros, começou a revirar a bolsa meio desesperada. De repente, um celular apareceu em sua mão:
- Que sentimento ruim! Podia jurar que meu iPhone havia sumido e hoje é dia de faxina lá em casa. Minha bolsa ficou um bom tempo aberta no sofá.
- Mas a faxineira não é de confiança?
- É. Mas nunca se sabe, este pessoal... Ainda bem que foi só um sentimento ruim.
Olhei para elas e o sentimento ruim passou a ser meu. Tinha acabado de ver e ouvir uma atitude preconceituosa e me senti cansada e sem forças demais para reagir. O máximo que consegui foi me sentir indignada e ter pena da faxineira que deveria morar na periferia, atravessar a cidade todos os dias num coletivo lotado e além de pobre certamente deveria também ser negra. O suspeito ideal para qualquer crime imaginado por determinadas cabecinhas preconceituosas que são encontradas em qualquer dia, em qualquer esquina. Infelizmente.

Lourença Lou

LXVIII


Minha amiga Lisie era executiva de uma multinacional. Sempre foi elogiada pelos seus bons resultados. Dois anos depois, sua empresa foi vendida e ela demitida. Ela era a única negra da equipe. E a única a ser demitida.



Lourença Lou

LXVII



Eu a conheci no início do século. Desde a primeira leitura nos apaixonamos. Ela sempre foi divertida, ousada e respondona. Uma quase menina. Eu já era uma avó (mais pra mãe, reconheço), e estava iniciando uma nova ordem, uma quase adolescência tardia. Tínhamos em comum o amor à leitura, a profissão - ela era estudante de letras - e uma inconfessável atração por situações inusitadas. Fomos parceiras num site de crônicas, num shopping em BH e em intermináveis conversas e risadas. Apesar de todas as nossas diferenças, durante alguns anos ela foi minha melhor amiga. Até que nos desaparecemos, mesmo sem termos sumido. Fiquei eu, gostando dela.



Lourença Lou

LXVI


Mostrei a ele os originais do livro. Ele deu uma lida superficial - já conhecia a maioria dos contos breves - e falou: Está esquisita esta desordem cronológica. E você não disse que seriam apenas 40 minicontos? Fiquei olhando para ele sem saber se respondia ou mandava ler Baudelaire. Na dúvida, respondi: - “O direito mais sagrado do homem é contradizer-se.” Ele não sorriu nem comentou nada. Reconheci: Acabei de ler esta frase. Ele sabia que eu não era tão culta nem tinha memória tão boa para fazer citações de improviso. Mas... mas navegar era preciso. Fiz-lhe uma careta e mandei-lhe um beijo conciliador. Afinal, eu o amava. Mesmo ele sendo um chato!

Lourença Lou

L

Não gostava de garotos. Andava sobre saltos e achava que homens maduros eram os grandes parceiros. Aquele menino subverteu meus conceitos ...